É Quarta-Feira de Cinzas, hora de afogar a folia no bacanal da sobriedade e deixar o vernáculo marinado na abstenção etílica. Hoje não tem Tati Quebra Barraco, falô? Vamos matar a esbórnia para iniciarmos um tempo de recolhimento - como preconiza o catolicismo na penitência da quaresma. Ivete Sangalo avisa que é preciso macetar, pra usar o verbo do momento, o espírito carnavalesco - “macetando, macetando, macetando, macetando”.
Desde sexta-feira, queimamos nossos arsenais e, nessa farra, brincamos no baile de máscaras bizarras: malandros e otários em arruaça. Folia, nos fez rir. Folia, nos fará rir o ano inteiro. Já dizia o poeta Ricardo de Carvalho Duarte: “vem me abocanhar/ sua saia preta/ eu posso estraçalhar”. Grande Chacal, coautor da canção “Carnaval” ao lado de Paulo Pizziali, Frejat, Rachel, sob inspiração de Guto Goffi. Foi gravada pelo Barão Vermelho no disco de 1988.
Assumimos que nunca existiu pecado a partir de quinta-feira, 8. Ao considerarmos a pré-folia, contudo, a festa se iniciou no primeiro fim de semana deste mês. Point da boêmia alternativa da Capital, o Shiva Alt-Bar botou o Bloco Esquina nas ruas do Setor Oeste, onde se apresentaram os grupos Bala Desejo e Mundo Livre S/A. Houve também as guitarras trepidantes da banda goiana Overfuzz, numa noite que contou ainda com Baba de Sheeva.
Se sextamos ao som do bom e velho rock’n roll, é preciso dizer ao leitor que tudo se iniciou na quinta com o Bloco Socialista. Além de foliões e da escola Lua-Alá desfilando pelas ruas do Leste Universitário, a banda Mundhumano embalou o público com suingue e releituras de Elza Soares, Caetano Veloso e Gilberto Gil, sem esquecer de canções lançadas pelo grupo no último disco, “Os Deuses que Dançam”. Foi um questionamento às normas vigentes e aos padrões impostos, num ritual em que brindamos momisticamente a beleza da existência.
Deryk Santana, diretor de políticas para trabalhadores da cultura no Ministério da Cultura (MinC), definiu numa rede social o evento como “lindo”. O Bloco Socialista virou clássico do carnaval goianiense. Criado em 2012, baseia-se na cultura popular e tem colaboração das escolas Lua-Alá, Brasil Mulato e Flora do Vale, além de blocos percussivos como Coró de Pau, Blocão da 1018 e o Bloco do Caçador, este último localizado na Cidade de Goiás - na antiga capital, aliás, a folia é levada a sério. Vivemos bons momentos no Universitário. Nem mesmo a chuva atrapalhou.
Outro destaque foi o Bloco Não é Não. Com objetivo de lutar contra a importunação sexual (essencial), nasceu quando a psicóloga e doutora em Educação Cida Alves acompanhava vítimas de violência na Secretaria Municipal de Saúde da Capital, em 2017. Rapidamente, a iniciativa se tornou um símbolo carnavalesco por três motivos: pela necessidade de batalhar para dar um chega pra lá na cultura do estupro, pela importância de alertar sobre formas de agressão feminina e pela necessidade de trabalhar na infância o conceito de consentimento.
Não é não, afinal. Ou, ao menos, deveria ser. A recomendação para curtir a folia é confete e serpentina, porém algo urgente precisa entrar na cabeça dos homens: “não” quer dizer “não”. O repórter presenciou nas imediações da Praça Cívica, num posto de gasolina, na segunda, um sujeito - inconveniente - que saiu a esmo oferecendo tequila às mulheres, muitas das quais constrangidas com tal ato. Mesmo que haja oportunidade ao acasalamento no carnaval, configura-se tênue a linha entre flerte e assédio. Entendam isso, por favor.
Festa rolou solta pelas avenidas da metrópole
Afora os velhos hábitos machistas de sempre, a festa transcorreu muito bem pelas ruas da nonagenária metrópole. Intelectuais pegaram carona no Não é Não - cuja concentração ocorreu no bar Charminho da Araguaia, sábado - e foram até o Cepal, no Setor Sul. Enfrentou-se ali cultura do estupro, pois mulheres andaram pelas ruas livres, sem medo e empoderadas. O bloco diz, em comunicado publicado numa rede social, que houve trabalho de campanha para sensibilizar a população sobre a relevância da autodefesa ao corpo feminino.
Nem a origem católica do carnaval no Brasil impede a subversão da ordem, conforme mostra o antropólogo Roberto Da Matta na obra “Carnavais, Malandros e Heróis”, de 79. De acordo com o que escrevera o pesquisador, a folia se caracterizou na história pela forma com a qual questiona a norma, quebra o padrão e menospreza as repressões. Toca ainda em temas tabus, que vão da nudez à sensualidade, além do debate sobre feminismo e racismo.
Claro que a embriaguez não fica fora disso, a exemplo do que se ouve em “O Mestre Sala dos Mares”, de Aldir Blanc e João Bosco, popular na voz da cantora Elis Regina: “Glória à farofa/ À cachaça, às baleias”. Nessa perspectiva, com alto apelo erótico e clamor à liberdade feminina, a funkeira Tati Quebra Barraco balançou as estruturas da Praça Cívica, durante a noite do último domingo, 11. A recepção do público foi tão calorosa que a artista se limitou a agradecer tamanha energia. “Obrigada Goiânia! Que carnaval gostoso! Foi incrível”, diz.
Tal qual seu desejo, barraco algum parou em pé por lá. Organizado pela Secretaria Municipal da Cultura (Secult), o show deixou o público satisfeito e demonstrou que Goiânia possui vocação carnavalesca. Na segunda, a Lua-Alá comemorou seus 35 anos com desfile que levou 600 integrantes fantasiados à Praça Cívica sambando ao ritmo do enredo “Lá Vem o Trem em Goiás”. À frente dos ritmistas, as rainhas interpretaram a inclusão. Semio Carlos, presidente da agremiação, afirma que teve preta, loira, gorda, cega, trans e idosa.
“Carnaval é isso, é a junção de tudo e, claro, com muito amor envolvido”, afirma Semio. A Praça Cívica recebeu ainda o MC Jacaré, que possui certo reconhecimento nacional. Em seu show, trouxe animação e muito funk. De Goiás, apresentaram-se Darlan Henrique, Arthur Guiliane, Nara Gonçalves, Marcilene Ramalho, Pamela Alves, Rodolfo Magalhães, Dilmar e Diogo. Ontem, cinco bandas de rock encerraram a folia. Foi um carnaval eclético, de fato.