A banda Carne Doce expurga a saudade dos fãs ao lançar nas plataformas de streaming à meia-noite desta sexta-feira, 19, a música “Noite dos Tristes”. Na canção, a primeira do aguardado quinto disco produzido pelo grupo goiano, pode-se ouvir a característica sonoridade sensual da carne, mas com um toque poético pra lá de atraente e ao mesmo tempo melancólico. Melancolia essa que é docemente gostosa: trata-se de canção para aqueles que acordaram felizes, como anuncia o verso cantado pela vocalista Salma Jô.
Ao escutarmos a faixa, nasce no âmago das nossas almas uma vontade desvairada de sair por aí para encontrar “gente que também é um pouco triste”. Aqui, me perdoe, leitor, eu evoquei Fernando Pessoa, o poeta responsável por dizer que toda poesia - e a canção é uma poesia ajudada, ensina o mestre português - reflete o que nós não temos. “Por isso a canção dos povos tristes é alegre e a canção dos povos alegres é triste”, define Pessoa, no clássico “O Fado e a Alma Portuguesa”, um texto essencial tal qual costuma ser toda a obra pessoana.
Salma vocaliza que curte sair para encontrar gente que também é um bocado triste e está curiosa pra ver “juntinho mais um dia terminar”. “Na noite dos tristes/ revivendo o mistério/ de ver toda essa alegria/ transbordar”, canta. Sim, há que se destacar a habilidade discursiva da artista em burilar palavras até torná-las interessantes para o texto musical. Essa é uma tradição do cancioneiro brasileiro, vide Torquato Neto e Cacaso, por exemplo.
Poesia, como vemos, há. E de sobra. Atente-se para os versos de “Comida Amarga”, canção do disco “Tônus”, lançado em 2018: “Nenhum disfarce no teu olhar/ eu já venci, já não sou mais gostosa/ Você goza triste em mim”. Ou, se preferir, veja o que Salma tem a nos falar na erótica “Amor Distrai (Durin)”, do mesmo disco: “Cê vem macio, cê vem durin/ Relaxa, encaixa, engata em mim, me bota sem apoio/ Seu corpo é meu apoio pra eu deixar cair/ Sem me machucar muito” Quem não gosta de gozar em alto e bom som, afinal de contas?
Ao Diário da Manhã, o guitarrista Macloys Aquino - parceiro de Salma na vida e na arte - já declarou que observa nas letras escritas pela vocalista uma predileção por explorar a dualidade da natureza humana, como moral versus imoral, devasso versos púdico, razão versos impulso. “É uma inclinação dela, dos autores que ela lê, de como ela vê a vida, e que ela acabou aprimorando com o exercício da composição”, contou o músico, numa época de incerteza em que a covid criou simulacros da realidade - eu na minha casa, Macloys na dele.
As letras de Salma adquirem cor com os arranjos criados por Macloys, com guitarras melódicas, cheias de efeito e regionalidade. Sim, a música do grupo carrega a goianidade, falando sobre a infância (“Amigo dos Bichos”), sibilando contra a expansão urbana (“Sertão Urbano”) e versando sobre o fato de cada vez mais - ainda bem - o povo ser preto (“Preto Negro”). Como mostra a historiografia, Goiás foi formado pelos povos originários, mas chegara a ser assaltado quando os bandeirantes aqui puseram os pés, no Ciclo do Ouro.
Olhos e ouvidos
Desde 2014, cada lançamento da banda goiana atrai olhos e ouvidos Brasil afora. Assim como Boogarins, amigos que se internacionalizam na última década, o casal de compositores leva pelo País a aridez do Centro-Oeste. Todos os discos lançados até aqui - “Carne Doce”, de 2014, “Princesa”, de 2016, “Tônus”, de 2018, e “Interior”, de 2020 - receberam elogios da crítica especializada. E, com isso, o grupo começou a participar de principais festivais de música, como o tradicional Lollapalooza, no qual se apresentaram (e bem) em 2019.
Em 2016, dois anos depois do bem-falado primeiro disco, “Princesa” inseriu no grupo a pecha de “trilha feminista”, porém Macloys Aquino ressaltou a este jornal, em 2020, que o álbum em si não tinha essa pretensão. Contudo, goste-se ou não, e se trata de obra-chave na discografia dos goianos, duas canções reforçaram tal status: “Artemísia”, um retrato de uma mulher que abortou, e “Falo”, uma crítica que explora as tensões vividas patriarcado, sistema social cuja educação e cultura possibilita relações sociais que favorecem os homens.
Sim, a banda virou uma voz pública feminista, o que não a impediu de ser exposta nas redes sociais. De acordo com internautas, a Carne Doce teria passado pano para um ex-baterista acusado de estupro, embora o músico tenha sido afastado algum tempo depois, no final de 2018. Mesmo assim, isso desencadeou uma onda de shows cancelados, conforme a banda relatou em publicação realizada na plataforma X, à época ainda chamada de Twitter: “É arbitrária e grotesca a forma como se deu o cerceamento das apresentações”.
Para o grupo, a crítica é um direito de todos os cidadãos. “É inaceitável, no entanto, que se defenda o cancelamento de uma artista e todo o seu trabalho como solução para acusações alheias, como instrumento de moralização”, disse a banda, numa postagem no antigo Twitter. “Esta pequena turnê que reuniria Carne Doce e Letrux, e que envolveria outros profissionais, se inspirava em mútua admiração artística e ideológica, e em uma relação de afeto que se construiu na estrada nos últimos anos, nos shows que já fizemos juntos.”
Já aos primeiros acordes, sem perder tempo, percebe-se no som da Carne Doce as marcas de Gal Costa, com pitadas de Elis Regina - influência de Salma: há interessantes incursões pela vanguarda, pelo regionalismo e pelo vintage. “Noite dos Tristes” nos deixa ansiosos: o que esperar do próximo disco? Ora, boa música - a mesma que as pessoas se posicionarem à frente do palco, no Lollapalooza, para ouvi-los tocando aquela música psicodélica e se encantando com aquele pós-tropicalismo. Aguardemos pelo que virá no futuro.
Noite dos Tristes
Banda: Carne Doce
Gênero: indie
Disponível no streaming à meia-noite