O cinema goiano marca presença, neste ano, na Mostra de Tiradentes. Após os longas “Vermelha”, do diretor Getúlio Ribeiro, e “Parque Oeste”, documentário realizado por Fabiana Assis, se saírem vencedores das mostras Aurora e Olhos Livres em 2019, chegou a vez de Cris Ventura levar hoje a identidade goiana às telas do histórico município mineiro.
Cris criou obra cinematográfica de ficção a partir da qual, segundo texto assinado pelos críticos e curadores Camila Vieira, Francis Vogner dos Reis e Lila Foster, assume a leveza e a despretensão das conversas surgidas ao caminhar pelas históricas ruas vilaboenses. Ao longo de 67 minutos, a cineasta retrata encontro de moradoras da Rua de Cambaúba, na Cidade de Goiás, para mostrar vivências a respeito do que é viver pela região.
Na tela, estão a histórica cidade goiana do ciclo de ouro, seus espaços e suas histórias, sem anteceder a vivência das mulheres filmadas. “É também através da vida que toma forma o assombro de um passado violento e suas formas de resistências”, comentam os curadores, referências Brasil afora acerca de estudos relacionados ao cinema brasileiro contemporâneo. “Cambaúba” será exibido na noite desta quarta-feira, 25, na mostra Olhos Livres.
“A ideia do filme surgiu quando morava na rua Bartolomeu Bueno, que recebe o apelido de Cambaúba. Quando me mudei pra rua havia colocado o nome Cambaúba no endereço para correspondência, e quando carteiro veio me entregar a encomenda, me corrigiu sobre o nome da rua e disse que, se não usasse o nome oficial, não poderia me entregar as encomendas e correspondências”, conta a cineasta, ao DM, em troca de mensagens.
Ao se deparar com essa incongruência, então, decidiu que precisava correr atrás do significado da palavra Cambaúba e, por extensão, quem foi Bartolomeu Bueno. Ora, e quem foi? Em poucas palavras, um sujeito conhecido como Anhanguera ou Diabo Velho, por causa dos horrores que provocara aos povos originários. Causou arrepios, instigou pesadelos. Afinal de contas, Bartolomeu Bueno (pai) perdera seu olho num enfrentamento indígena
“Descobri que Cambaúba é uma planta de galho fino, que era muito utilizado para fazer flechas. E o nome Cambaúba já era utilizado no primeiro mapa da cidade de Goiás. Ou seja, muito provavelmente esse local, que fica próximo à Cari-oca, ou casa de Cari, já era conhecido como Cambaúba antes da chegada dos bandeirantes”, relata Cris Ventura.
Fantasma de Anhanguera
Nessa tentativa de construir uma complexa trama temporal, Cris mergulhou no universo das confluências cosmológicas, lendas e narrativas sobre a ocupação do território goiano. A rua, na trama de “Cambaúba”, passa a ser assombrada pelo fantasma do Anhanguera e pela índigena Cari, aprisionada no Rio Vermelho por uma maldição. Para se libertar dela, precisará recorrer à flecha que atravessa os tempos e, só então, compreenderá o presente.
Cris conta à reportagem que o filme foi construído a partir de encontros entre vizinhas da rua Cambaúba. “É bastante comum em Goiás se sentir em uma cadeira de fio na porta de casa e observar rua, os vizinhos, para um pouquinho para conversas triviais ou conversas mais densas, memórias, desabafos, ou mesmo para contar com o que sonhou”, explica a diretora, destacando Cambaúba é conhecida pela presença de crianças brincando na rua.
Por lá, como se nota, há festividade, alegria e tranquilidade. E o filme, acredita a cineasta, carrega um pouco desse cotidiano. Suas referências? Adirley Queirós, destaque no Festival de Berlim em 2022, homenageado na Mostra de Tiradentes e participante do último Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental (Fica). Ele é diretor do aclamado “A Cidade é Uma Só”, no qual mostra, por meio da linguagem cinematográfica documental, a retirada da população, nos anos 1970, de Ceilândia, cidade satélite do Distrito Federal.
“Adirley filma seus amigos e o território, a comunidade em que vivem”, resume Cris Ventura, que vê sobrevivência ao participar da Mostra de Tiradentes, neste ano, após os ataques promovidos nos últimos anos pela extrema-direita ao cinema nacional. “O filme fala muito sobre a importância da alegria, pois, apesar de todo esforço deles, não sucumbimos.”
Produzido pela Universo Produção desde 1998, a Mostra de Tiradentes chega à sua vigésima sexta edição. Sua criação ocorreu durante a chamada “retomada” do cinema brasileiro, após o apagão promovido pelo governo de Fernando Collor de Mello, que fechou a Embrafilmes. Hoje, o evento se tornou uma das maiores vitrines do audiovisual brasileiro.