Cultura

Com ‘A Chama’, Leonard Cohen acerta as contas com o passado

Marcus Vinícius Beck

Publicado em 10 de abril de 2022 às 19:14 | Atualizado há 3 anos

Antonio Gonçalves Filho

Agência Estado

O canadense Leonard Cohen é mais conhecido como compositor de canções como “Hallelujah” e “Suzanne”, que transitam entre o mundo sobrenatural e o absolutamente real, mas é como poeta que ele surge no póstumo “A Chama”. Autor de vários livros de poesia (“Flores para Hitler”, “Salmos”) e romances (“A Brincadeira Favorita”, “Beautiful Losers”), Leonard Cohen morreu em 2016, deixando para o filho Adam a tarefa de organizar seu livro “A Chama”, dividido em três partes: na primeira estão 63 poemas selecionados pelo autor; na segunda, poemas que se tornaram letras de canções, alguns deles publicados antes na revista New Yorker. Finalmente, na terceira parte, estão reunidos excertos dos cadernos de anotações que Cohen manteve por mais de seis décadas (ele morreu aos 82 anos). Para concluir o projeto, foram incluídos na publicação 70 dos 370 autorretratos que deixou, além de 24 desenhos. Em tempo: não é um conteúdo indicado para os não iniciados na obra de Cohen.

Repleta
de referências autobiográficas, de erotismo tardio e certo sentimento religioso
que remete às origens judaicas do autor, sua obra assim resumida pode levar um
ou outro leitor a concluir que o papel de Cohen como poeta foi superestimado
pelos críticos. Ou mesmo o de cantor – o cover de Jeff Buckley (1966-1997) para
“Hallelujah”, por exemplo, é melhor que sua gravação original, assim como o
registro de “Suzanne” por Nina Simone. Mas como resistir à sedução melancólica
de “Famous Blue Raincoat” (um dos pontos altos do soturno “Songs of Love and
Hate”, de 1971, um de seus melhores discos) cantada por ele?

Parece
claro que as perdas românticas do testemunho poético de Cohen nem de longe se
comparam ao abismo existencial de um Paul Celan, para citar apenas um poeta
europeu que ousou escrever poesia depois de Auschwitz. Celan, ademais, sofreu
as consequências de uma campanha de caráter antissemita. Cohen, não. Aos 30
anos, passou a se dedicar à música, afastando-se da tradição – sua família era
de judeus ortodoxos -, embora fosse respeitoso e até reverenciasse a religião
dos ancestrais. Os cafés e clubes de Little Portugal no Saint-Laurent Boulevard
(o quarteirão português de Montreal) exerceram, porém, maior poder de atração –
e foi nesse ambiente de boemia que sua poesia evoluiu, contando histórias de
amores desfeitos, deslocados sociais, surtos depressivos e crises de fé – das
quais “Hallelujah” é o exemplo maior.

Como
canção, “Hallelujah” explora o conflito entre a criatura e seu Deus de modo
lírico. Excluída a música, a letra soa como um simples desabafo. Perde a força.
Compare-a com o poema “Tenebrae de Celan”, em que ambos – Criador e criatura –
estão amalgamados num só corpo. Um poema com gosto de morte, em que a criatura,
ao contrário do rei David da canção de Cohen, não toca nenhum acorde sagrado
para agradar ao Senhor, mas vai com Ele ao bebedouro onde Deus verteu sangue.
Há tragédia em Celan – e só um esboço dela em Cohen. Apesar disso, “Hallelujah”
é um marco como hino religioso. Mas nem tanto como poesia.

A grande
influência de Cohen chama-se Federico García Lorca. A Espanha sempre foi uma
referência para ele. Até mesmo o homem que ensinou violão ao músico canadense
era um espanhol. Ao receber o cobiçado prêmio Asturias em 2011, Cohen disse,
brincando, que Lorca “arruinou” sua vida (seu discurso está reproduzido no
livro). Forçou-o a procurar a própria voz – o que não o impediu de dar o nome
do poeta andaluz à filha, tamanha era sua identificação com Lorca. Prova dessa
influência é uma de suas mais conhecidas canções, “Take This Waltz” (do disco “I’m
Your Man”, de 1988), em que a ressonância dos versos sentimentais de Lorca é
evidente.

Identidade

Canções
como “Bird on the Wire” são provas dessa busca pela identidade e liberdade
poética. Há exemplos em “A Chama” que rivalizam com ela (“Sansão em New Orleans”
é uma parábola que une reis e maltrapilhos num mesmo ambiente, todos em busca
de uma resposta para a derrubada de templos). Esse embate com os céus só
terminaria de modo pacífico quando Cohen se converteu ao budismo nos anos 1990
e virou monge zen.

Tal
experiência é parcialmente descrita em “Winter on Mount Baldy” (produzido em
agosto de 2015, um ano antes de sua morte), que descreve a luta pela
sobrevivência dos monges num monte escuro e gelado, em pleno inverno. Uma excursão
feita de metáforas, portanto. E romantismo. Cohen permaneceu fiel até a morte
ao espírito romântico, como prova o poema “On the Level”, sobre um velho em
luta contra seus impulsos eróticos.

Essa
trajetória de canadense errante, que viveu em vários países e teve inúmeras
musas, é contada na última parte do derradeiro livro de Cohen. Evoque-se que,
em 1979, Cohen já falava da nostalgia do lar ao escrever uma versão moderna de “Un
Canadien Errant”, de Antoine Gérin Lajoie, verdadeiro hino patriótico escrito
em 1842 para descrever a dor do exílio. “A Chama” é um acerto de contas com o
passado de um homem que viajou por vários países em busca da iluminação, da
Índia a Israel, passando pelos Estados Unidos, Grécia e Itália. O epílogo de
seu livro narra essa reconciliação com a terra natal após todos esses anos de
exílio voluntário, registrado em notas esparsas que seu filho Adam,
pacientemente, reuniu.

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