Vencedor do maior prêmio literário da Bolívia, o escritor Gabriel Mamani Magne, 36, balançou as estruturas enferrujadas da literatura latino-americana com o romance “Seul, São Paulo”, editado no Brasil pela Todavia. Ele lança a obra nesta quinta-feira, 16, a partir das 19h, num bate-papo entre o autor e o diretor da Cátedra Lídia Jorge, Rogério Canedo.
O evento ocorre na Livraria Leitura, Setor Bueno. Será mediado pelo professor Marcelo Ferraz, ligado à Teoria Literária na Faculdade de Letras da UFG. Marcelo, inclusive, acaba de publicar o livro “Doente de Brasil” (editora Patuá), no qual radiografou um país adoecido, convulsionado e decrépito durante oito histórias ambientadas em capitais brasileiras.
Vai que, por estar escutando a partida, o médico cortasse algo que não deveria cortar. Vai que a Bolívia ganhasse e, por vingança, os enfermeiros aumentassem a temperatura da incubadora e seu primo se queimasse Trecho de 'Seul, São Paulo'
Publicado na Bolívia em 2019, “Seul, São Paulo” se passa entre El Alto, La Paz, São Paulo e uma Seul imaginada pelo K-pop, a música popular coreana. Uma rápida audição mostra que o estilo mistura diferentes gêneros musicais, caso de pop, hip-hop, eletrônico e até grunge – como faz a banda alternativa Balming Tiger. Esse som tem se tornado febre entre os jovens.
Gabriel Mamani se mostra um escritor de sensibilidade poética, conforme observa o crítico César de Bordons, em texto publicado no “Diario de Sevilla”. Em 152 páginas, Gabriel demonstra inteligência narrativa, numa prosa que jamais abre mão da musicalidade, do ritmo que dá à frase, da cadência a serviço da arte literária – como se fosse uma nota tocada pelo Foo Fighters ou um gol feito por Lewandowski nos tempos de Borussia Dortmund.
Muito se fala sobre esta relação íntima: escritor e palavra. Ou sensualidade e lirismo. Voz narrativa e originalidade. E transgressão. É algo que nem sempre se vê em romances esparramados pelas prateleiras de livrarias, mas Gabriel se esforça para dar braçadas no mar dos verbos e predicados – de forma a nadar contra a corrente. Imigração, racismo, pobreza, relações de trabalho e alteridade modelam a paisagem juvenil de “Seul, São Paulo”.
Romance de formação, o livro narra a história de dois primos, Tayson Pacsi e o afiado narrador – que é anônimo. Tayson nasceu no dia em que o Brasil jogara a final da Copa América contra a Bolívia, partida vencida pelo time pentacampeão pelo placar de 3 a 1, em La Paz, 1997. “Minha tia Corina, a mãe dele, fala sobre o medo que congelou seu corpo quando percebeu que os enfermeiros estavam com fones de ouvido”, diz a voz do romance.
A mãe temeu pelo pior. Aflita e tonitruante, falava que os brasileiros são uns loucos, seres desvairados. “Vai que, por estar escutando a partida, o médico cortasse algo que não deveria cortar. Vai que a Bolívia ganhasse e, por vingança, os enfermeiros aumentassem a temperatura da incubadora e seu primo se queimasse.” Ninguém cortou nada errado, mas a Bolívia levou três: Denílson, Ronaldo e Zé Roberto. Erwin Sánchez marcou para os andinos.
“Sobre futebol, bem, o que eu posso te dizer? Gosto muito. Torço muito pelo meu time, mas também gosto de futebol não somente como esporte – ou espetáculo –, e sim como produto social, que pode ser analisado, pensado”, diz Gabriel Mamani ao DM. Adepto do The Strongest, de La Paz, Gabriel acredita que – sendo boliviano e morador do Brasil – tem uma experiência interessante com futebol, pois vê jogos dos campeonatos brasileiro e boliviano.
Descobertas
Entre ônibus lotados e vendendo pipoca pela cidade, ambos provam o sabor das descobertas únicas para todos nós nos anos de formação: o álcool, o sexo e as paixões — pelas garotas do pré-militar, pelo pop coreano e pelos times de futebol. As descrições sobre os times, aliás, são emocionantes. “São sinfônicos; cada jogador conhece o outro, cada jogada segue uma partitura, uma música”, diz o narrador, falando do meio-campo da seleção alemã.
“Seul, São Paulo” tem linguagem direita. De acordo com o primo, o ferino narrador do romance, foi “uma batalha constante entre a língua dos seus pais e a língua do seu passaporte”. “Muito portunhol. Também um pouco de aimará”, revela. Dezessete anos mais tarde, a família de Tayson volta mais capitalizada para El Alto, na Bolívia, e os dois primos frequentam o serviço pré-militar, obrigatório no país andino para todos os adolescentes.
“Sobre futebol, bem, o que eu posso te dizer? Gosto muito. Torço muito pelo meu time, mas também gosto de futebol não somente como esporte – ou espetáculo –, e sim como produto social, que pode ser analisado, pensado Gabriel Mamani Magne, escritor
Além de tio Waldo e tia Corina, pais de Tayson, o tio Casimiro vive no Chile e ganha a vida como contrabandista. Já os pais do narrador são “covardes” e continuaram pobres porque não tiveram a mesma coragem dos outros. O narrador amadurece ao tentar descobrir quem é.
Talvez uma das soluções seja partir para um Brasil idealizado com os pais de Tayson, que anseiam por voltar a São Paulo. Numa manhã, às dez horas, guarda a jaqueta na mochila. Puxa o zíper e se depara com a encomenda de Dino revestida no papel-alumínio. Vencido pela curiosidade, tira o invólucro: cocaína. Experimenta-a e sai pela metrópole.
“São Paulo é um bloco colossal de cimento que nada tem a ver com a ideia praiana de Brasil vendida pela mídia. Homens de terno e mulheres de rosto comprido. Olheiras sobre peles brancas. Olheiras sobre peles café com leite. E tudo nas pessoas parece dizer: trabalho trabalho trabalho”, narra. De alguma forma, “Seul, São Paulo” é um consolo ao leitor.
Seul, São Paulo
Amanhã, às 19h
Livraria Leitura
Goiânia Shopping
Av. T-10, St. Bueno
R$ 69,90