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Como a novela 'Beleza Fatal' sacode o mercado, em crise que vai da Globo ao México

Enfrentando uma crise de audiência, a novela do Brasil agora vê o streaming avançar no gênero. Warner e Netflix, por exemplo, vêm mudando a linguagem

Giovanna Antonelli: streaming entendeu que é preciso ter rosto conhecido em suas tramas - Foto: HBO Max/ Divulgação Giovanna Antonelli: streaming entendeu que é preciso ter rosto conhecido em suas tramas - Foto: HBO Max/ Divulgação

Novela é paixão nacional, dizem, mas já faz tempo que parece que não. Há mais de uma década o país não para por causa de uma delas, como no final de "Avenida Brasil", em 2012, e com "A Próxima Vítima", há 30 anos, e na década anterior, com "Vale Tudo", quando todos queriam saber quem matou Odete Roitman.

Para além das fronteiras, a telenovela também não vai bem no México, de "A Usurpadora". Na contramão, o filão ganha força na Turquia e na Coreia do Sul, que exportam melodramas aos monte.

Enfrentando uma crise de audiência, a novela do Brasil agora vê o streaming avançar no gênero. Warner e Netflix, por exemplo, vêm mudando a linguagem, com tramas curtas fora da lógica de exibição de dia e hora que rege o mercado.

Está em curso um chacoalhão de um império antes dominado pela Globo. Sinal disso é "Beleza Fatal", recém-lançada na Max, da Warner, que já está toda gravada. É uma obra fechada, sem mudanças no meio da trama, como ocorre na TV aberta, algo antes essencial nesse gênero.

Mais radical foi a Netflix com "Pedaço de Mim", que liberou os seus 17 episódios -só 17-, de uma tacada só. Ela e "Beleza Fatal" estão distantes dos 160, às vezes 200 capítulos, das novelas da Globo.

Tudo isso deu certo. "Beleza Fatal", que chega à sua terceira semana, virou febre -a novela teve mais horas vistas, em sua primeira semana, que qualquer outro conteúdo da Max, brasileiro ou não.

Em paralelo, a Netflix acaba de derrotar a Globo no prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte com "Pedaço de Mim", com Juliana Paes. Mas há quem questione se isso é novela. A plataforma evita o termo porque sabe que a obra se aproxima mais das séries. É uma minissérie de melodrama, a empresa afirma.

Não há consenso. Silvio de Abreu, um dos maiores dramaturgos do país, autor de "Rainha da Sucata" e "Guerra dos Sexos", diz que tamanho não é documento e o que define a novela são elementos narrativos -muito drama, linguagem popular e uma história contada em capítulos.

Já Mauro de Alencar, autor de "A Hollywood Brasileira", diz que nenhuma obra com menos de 20 capítulos é uma novela.

Características

Isso é complexo. Telenovelas têm outros elementos, como reviravoltas, ganchos eletrizantes, vilões e mocinhos bem definidos, como nas clássicas "Vale Tudo" e "Avenida Brasil". Precisam emocionar, falar ao público. Está aí, dizem especialistas, o problema da atual novela das nove, "Mania de Você", de João Emanuel Carneiro, o mesmo de "Avenida Brasil".

Fracasso de audiência, a obra tem entediado com dramas estapafúrdios de gente rica, além de confundir o espectador -- quem parecia mocinha ganhou traços de vilania, enquanto os malvados viram coitadinhos. "A psicologia dos personagens deve ser respeitada. Eles têm que ser claros em suas intenções para que o público não fique confuso", diz Silvio de Abreu.

"Mania de Você" foi descrita por Adriana Esteves, uma das protagonistas, como "The White Lotus", lembrando a série da HBO que ironiza a futilidade dos ricaços. Mas o público da Globo se interessa?

Números mostram que não. "Mania de Você" registrou até dezembro o pior índice da história do horário, antes de melhorar a média agora em janeiro.


		Como a novela 'Beleza Fatal' sacode o mercado, em crise que vai da Globo ao México
Adriana Esteves como Mércia, sua personagem no folhetim 'Mania de Você'. Foto: Manoella Mello/Globo


No ano passado, "Renascer" terminou com audiência morna. Antes dela, "Terra e Paixão" também não empolgou, e "Travessia", de 2022, foi ainda menos vista. A exceção foi o remake "Pantanal", que bateu seus próprios recordes várias vezes.

Mas a queda de audiência não significa menos receita, afirma a Globo, que reitera a relevância comercial de sua novela das nove, obra que alcança mais de 60 milhões de brasileiros por semana.

No ano passado e no retrasado a trama dessa faixa foi vista por oito em cada dez brasileiros, em 93% das casas do país. É de se levar em conta ainda que o canal tem hoje uma audiência pulverizada, na TV aberta, nas redes sociais e no Globoplay, o streaming da emissora. As novelas correspondem a 65% do consumo ali.

Ou seja, a telenovela ainda é a galinha dos ovos de ouro da Globo. Para monetizar isso, portanto, o canal usa vários modelos comerciais. Um deles é quando a empresa paga para inserir seu produto na trama -como quando um personagem diz que uma margarina é muito gostosa.

Há ainda o patrocínio por faixa, vendido a uma única marca. Hoje é o banco Itaú, no início de "Mania de Você", de segunda a sábado. E existem os comerciais da novela, horário mais valorizado pelo mercado. Por isso, a Globo prefere novelas compridas, capazes de estender esse engajamento por sete ou oito meses.

"Não importa o número absoluto de telespectadores, mas a qualidade do engajamento. A novela transborda para redes sociais, e o banco analisa a soma da exposição e do engajamento", diz Thaiza Akemi, superintendente de comunicação do Itaú, sem dizer como essa análise é feita.

Novela no streaming não tem tempo a perder

O cruzamento de TV aberta e streaming é hoje não só inevitável, como também desejado -a televisão ainda é vista como um canhão capaz de atingir milhões com um mesmo anúncio, enquanto os algoritmos online ajudam as marcas a atingir públicos específicos.

Para as novelas do streaming, a lógica é outra. "Beleza Fatal" até tem receita publicitária -a plataforma exibe anúncios em seu pacote mais barato--, mas o que interessa é fidelizar o novo assinante, atraído pela novela, fazer com que ele continue pagando após o fim da trama.

Mas como atrair o público da TV aberta? O elenco é fundamental. A Max entendeu que para emplacar "Beleza Fatal" precisaria de rostos conhecidíssimos, que não deixassem dúvida de que aquilo é novela, com cara de novela e ator de novela. Escalou Camila Pitanga, Camila Queiroz e Giovanna Antonelli, as três protagonistas, além de Marcelo Serrado, Caio Blat e Herson Capri, todos vindos da Globo.

Fez o mesmo nos bastidores, com a diretora Maria de Médicis, veterana da Globo. O roteirista Raphael Montes teve a supervisão de Silvio de Abreu, que, além de autor, foi chefe de dramaturgia na Globo.

Conhecida por séries de prestígio, como "Game of Thrones" e "Succession", a Max só decidiu fazer novelas por causa de um interesse comercial calculado. "Por serem maiores que séries, as novelas deixam o assinante mais tempo na plataforma. É um gênero que cria maior fidelização", diz Monica Pimentel, vice-presidente de conteúdo da Warner

A ideia é que a Max tenha oito semanas, o tempo de "Beleza Fatal", para convencer um novo público a ver "Big Little Lies", um dramalhão americano, ou a minissérie "Pinguim", a depender do gosto.

A executiva não conta quanto custou "Beleza Fatal". Para manter os olhos na tela e a conversa quente nas redes, a Max pediu que Montes repetisse na novela o tom instigante dos seus livros de suspense. Na trama, ele discute o universo das cirurgias plásticas -Lola, a vilã de Camila Pitanga, tem uma clínica duvidosa.

Uma novela no streaming não tem tempo a perder. A trama precisa ser ágil, porque a empresa depende que o espectador dê "play" no próximo episódio.

É diferente da TV aberta, que exibe os capítulos de suas novelas diariamente independente da escolha do público -e, por isso, faz tramas esticadas, cheias de repetições, porque sabe que é difícil alguém ver a novela todos os dias.

Para criar "Beleza Fatal", Raphael Montes foi seguido de perto por Silvio de Abreu, à época contratado para chefiar o desenvolvimento de novelas da Max não só do Brasil, mas de vários países da América do Sul. Ele diz que deixou o cargo porque o setor perdeu força internamente.

Pulso firme

Segundo o roteirista, o streaming representa, sim, uma ameaça à Globo, mas poderia não ser. Falta pulso firme na emissora, ele diz. "Vivemos uma crise. Se a TV aberta fizesse um produto à altura, conseguiria competir com o streaming. Mas ela está fazendo um produto que o povo não quer ver", afirma.

"Falta uma diretriz, especialmente para as novelas das nove. Os autores me parecem perdidos", lembrando que João Emanuel Carneiro, autor de "Mania de Você", no passado fez as elogiadas "A Favorita" e "Avenida Brasil". Procurado, Carneiro não respondeu.

Abreu atribui a crise ainda às mudanças administrativas pelas quais o setor de novelas da Globo passou nos últimos anos, que o fizeram deixar a empresa. "O problema é o executivo achar que sabe mais que artista. Executivo não entende de arte, não cria. Ele tem ideias, pesquisa, mas uma obra artística pertence ao artista, que é quem raciocina."

José Luiz Villamarim, atual diretor de teledramaturgia da Globo, defende a emissora. "O executivo deve valorizar o criador, que, por sua vez, deve encantar o executivo. É dessa boa relação que a televisão vai continuar apresentando relevância", afirma ele, por email.

O problema é o executivo achar que sabe mais que artista. Executivo não entende de arte, não cria. Ele tem ideias, pesquisa, mas uma obra artística pertence ao artista, que é quem raciocina." Silvio de Abreu, autor

Villamarim, que assumiu a chefia das novelas da Globo há cinco anos, dirigiu novelas como "Avenida Brasil" e "Amor de Mãe". Foi durante a sua gestão que a Globo encerrou a maioria dos contratos que mantinha com grandes atores e autores, passando a assinar com os artistas por obra, sem oferecer um salário fixo. A mudança abalou a estrutura da emissora e, na sequência, de todo o ecossistema de audiovisual do país, com atores, antes tidos como medalhões da Globo, deixados à deriva no mercado.

Foi o caso de Juliana Paes, que ficou 21 anos contratada na emissora, e agora fez trabalhos com Netflix e Disney. Camila Pitanga, por sua vez, assinou como atriz e produtora da Max -e este ano volta à Globo para um trabalho pontual na novela "Dona de Mim", escrita por Rosane Svartman, de "Vai na Fé".

Uma das novas autoras mais queridas pela Globo, Svartman lembra que uma novela "não é necessariamente autoral porque tem muita gente envolvida". "Há um elemento industrial forte, segue um modelo de negócio que depende da audiência e da publicidade, no caso da TV aberta, e por isso vemos modelos cada vez mais híbridos.

Atriz afirma que gênero vem sendo reoxigenado


		Como a novela 'Beleza Fatal' sacode o mercado, em crise que vai da Globo ao México
Camila Pitanga: "Ter concorrência é saudável, rico, e é o público quem sai no lucro". Foto: HBO Max/ Divulgação

Segundo Pitanga, isso significa a reoxigenação do gênero. "Ter concorrência é saudável, rico, e é o público quem sai no lucro", afirma. Murilo Rosa, seu colega de cena em "Beleza Fatal", tem uma visão mais pessimista. "O mercado poderia aproveitar melhor os talentos que hoje estão disponíveis para trabalhar."

Abreu reclama ainda das chamadas salas de roteiro, que hoje se espalham pela Globo. Nelas, vários escritores se reúnem para definir o desenrolar de uma trama --ele diz que bom mesmo era quando um folhetim era escrito por uma só pessoa, com ajudas pontuais.

"A renovação do quadro de autores é um processo natural", diz Villamarim, o diretor de teledramaturgia do canal. "A gente continua reverenciando os grandes mestres, mas com o olhar vivo no presente e no futuro de novos criadores. Sem falar no avanço fundamental da diversidade, que felizmente se reflete tanto nas salas de roteiro."

Não à toa, "Mania de Você", "Garota do Momento" e "Volta por Cima", exibidas hoje às nove, às seis e às sete, marcam um feito inédito na Globo -as três novelas têm protagonistas negras.

Nos outros canais, a situação varia. Enquanto o SBT vem dando menos destaque às novelas mexicanas que sempre exibiu, a Band acaba de fechar acordo com a Max para exibir "Beleza Fatal". Já a Record tem surfado na onda das tramas turcas -"Força de Mulher", exibida às nove, virou fenômeno no país.

"A novela turca pegou no Brasil porque as protagonistas, sempre do bem, batalham para conquistar seus objetivos, incluindo o amor", diz Mauro Alencar.

Lá fora

Monica Albuquerque, executiva que trabalhou com novelas na Globo, e depois na Warner, atribui a penetração dos folhetins turcos ao investimento que o governo do país faz na exportação das tramas. "Houve o entendimento de que, para aumentar o comércio internacional, era importante que a Turquia se aproximasse culturalmente de outros países do mundo, e nada melhor do que conteúdo ficcional para isso."

Albuquerque trabalha agora na Telemundo, rede de TV americana que produz conteúdo em espanhol para a população hispânica dos Estados Unidos. Quando saiu da Globo, ela foi contratada para cuidar da produção de novelas latinas da Warner e, por isso, teve de mergulhar na cultura do país para entender como anda o gênero por lá.

Produzida em ritmo industrial, a telenovela mexicana vive também suas crises. Reportagens apontam quedas notáveis de audiência, e críticos reclamam da falta de criatividade nas tramas.

"O México vem tentando entender qual é o melhor formato de novela para a TV aberta", diz Albuquerque. "Lá, a população abraçou o streaming, e isso inevitavelmente muda hábitos de consumo.

A mudança, então, é mesmo mundial. Com novelas turcas na Record, doramas sul-coreanos no Globoplay, a audiência de mal a pior, fica difícil vislumbrar o futuro da novela brasileira. Vale tudo nesse jogo, cada vez mais sem regras?

"As novelas brasileiras eram capa de revista, estampavam as primeiras páginas, e hoje sou chamado o tempo todo para falar de novelas de outros países", afirma Alencar. "Me preocupo com o andar da economia criativa da teledramaturgia brasileira. É nisso que as empresas deveriam prestar atenção."

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