Aproveito pra meter Angela Ro Ro ali na vitrola: blues com samba-canção. Ro Ro é a Billie Holiday de Copacabana. Pede à amada que não chegue na hora marcada, como paixões e palavras. Daí, devassa das mil rosas roubadas, avisa que lhe oferece seu calor, seu endereço.
Deu no Instagram: Ro Ro anuncia novo single. Será que pintará disco de inéditas? “Planos do Céu” estará disponível a partir da próxima sexta-feira, 26, no streaming. O arranjo e os teclados foram criados por Marcio Lomiranda. A guitarra, por sua vez, é de Rick Ferreira.
A compositora lançou “Selvagem” — seu último álbum de inéditas — há sete anos. De lá pra cá, só participou da faixa “O Grito”, da cantora Jey, feat para o qual foi convidada. A canção prestes a entrar no Spotify marca retorno da cantora à cena fonográfica, já que a pandemia lhe foi cruel. Rolaram altos perrengues, como falta de trabalho e — lógico — grana escassa.
Não bastassem essas dificuldades, se vê às voltas ainda com perda gradativa da audição no ouvido esquerdo. “Meu amor, meus amores. Música no Câmpus (UFG) é uma delícia. Uma oportunidade de eu estar pertinho de vocês, levando minha música, um pouco da minha vida e desejando tudo de bom”, saudou, num período barra pesada, em agosto de 2021.
Aos 74 anos, divide-se entre Rio de Janeiro, onde se hospeda na casa de amigos, e Saquarema, a 114 km da capital fluminense. Há três anos, viralizou ao publicar nas redes sociais vídeo em que afirmava passar por dificuldades financeiras. “Quem puder depositar apenas R$ 10, agradeço! Saúde a todos”, declarou a artista, socorrida pelos depósitos dos fãs.
Eu a via como uma Janis Joplin sem heroína, a cantora rebelde e escrachada que faltava no rock brasileiro Nelson Motta, produtor musical
Diva maldita, essa Ro Ro. Ana Terra, a poeta parceira em versos ardidos na fogueira das paixões, tomou conhecimento de que um grande amor vem de forma despretensiosa. Transamos, namoramos e casamos. Se gostamos do beijo, queremos a pessoa. “Amor, meu grande amor, que eu seja o último e o primeiro”, vocaliza, com rouquidão e tons graves.
Nelson Motta, produtor musical, diz que Angela se tornou conhecida como Ro Ro devido à sonoridade de sua gargalhada. “Eu a via como uma Janis Joplin sem heroína, a cantora rebelde e escrachada que faltava no rock brasileiro”, lembra, em “Noites Tropicais”, livro no qual narra suas canábicas peripécias pela bossa nova, jovem guarda, MPB, disco e rock.
Era intimidadora. Tão intimidadora que começou cedo na música. Aos cinco anos, já estudava piano. Estudo, aliás, que lhe preparou para tocar com aquele brilho foda dos acordes desassossegados. Tal estilo, que a faz ser uma espécie de Maysa-Joplin-Holiday, transforma seus primeiros discos numa explosão estilística entre blues, R&B, rock e jazz.
A trajetória de Ro Ro se inicia no começo dos anos 70. Na capital francesa, aproximou-se da turma com a qual Caetano Veloso andava se misturando naqueles tempos. Caetano, exilado, vivia por lá e, já que estava no epicentro da contracultura, resolveu se inteirar das boas novas: curtiu Hendrix, Stones e Zeppelin. Às vezes, inclusive, se psicodelizava.
Homem afável, Gil chamou a jovem carioca para atravessar o Canal da Mancha. Ro Ro tem dito em entrevistas que anotou o telefone, o endereço e, de repente, contatou o tropicalista. Como se fosse Dean Moriarty (célebre personagem do romance “On The Road”, de Jack Kerouac, publicado em 1957), disse-lhe que estava na esquina de sua casa, em Londres.
Imagine, então, o grau do espanto que se viu ali. A surpresa, todavia, passou logo depois. Festejada pela patota brasileira, foi convidada a participar do disco “Transa”, lançado em 1972. É a obra-prima de Caetano. Nomes como Jards Macalé e Gal Costa colaboraram na feitura do clássico elepê. Ro Ro, no que lhe diz respeito, grava gaita em "Nostalgia", última faixa do lado B.
Projeção
De volta ao Brasil, a carreira decolou apenas em 1979, com o elepê “Angela Ro Ro”. O lançamento ocorreu na loja Fiorucci, no Rio de Janeiro, num evento abarrotado de jornalistas. “Fiquei até com medo de tanto fotógrafo e os flashes espocando. Cheguei a pensar se ser fotografada faz mal como passar pelo raio-X”, debochou Ro Ro, na ocasião.
Fiz o primeiro disco, foi ótimo, vendeu bem, o segundo foi melhor ainda, show lotado, as músicas tocando no rádio, muito espaço na imprensa, todo mundo me paparicando, me adulando Angela Ro Ro, cantora
“Angela Ro Ro” reúne canções autobiográficas. Cru e rasgante, o eu-lírico afoga as lágrimas no uísque sem gelo. Ama sem esconder a homossexualidade. Prova-se coquetel com alto teor musical: balada, bolero, samba-canção, boogie-woogie, samba. Esses estilos são degustados nas canções “Amor, Meu Grande Amor”, “A Mim e a Mais Ninguém”, “Cheirando a Amor” e “Gota de Sangue”, esta última regravada por Maria Bethânia.
Celebrada como compositora (Marina Lima interpretou “Não Há Cabeça”), Ro Ro escandalizava a sociedade carioca. Foi detida numa manhã de abril de 1981 em frente à casa da cantora Zizi Possi, na zona sul do Rio de Janeiro. Não deixou barato: acusou os policiais de lhe terem agredida. E viu-se obrigada, ora pois, a revidar. Apenas os xingou, porém.
À jornalista Ana Maria Bahiana, em 1983, Ro Ro deu sua versão dos fatos. “Fiz o primeiro disco, foi ótimo, vendeu bem, o segundo foi melhor ainda, show lotado, as músicas tocando no rádio, muito espaço na imprensa, todo mundo me paparicando, me adulando. Aí veio o caso com a Zizi. Aquilo me destruiu. Eu não bati em ninguém”, ratificou.
Ro Ro foi torturada por policiais
Não se pode duvidar: 1981 foi um “Escândalo”. Como ocorrera com Maysa, todos entendiam que Ro Ro falava e bebia demais. Conforme as más línguas, enchia a cara pra valer na noite carioca. Comportava-se tal qual uma maldita — no sentido Arthur Rimbaud da expressão. Desdenhando dos caretas e tendo piedade dos covardes, falava sobre seus casos lésbicos com uma intensidade maquiada, muitas vezes, pelo jeito irreverente.
Guiava-se por um pensamento existencialista: “só nos resta viver”. Arrancando a roupa para se sentir à vontade (como diz na canção “Blues do Arranco”), estava no embalo do hit “Amor, Meu Grande Amor”, parceria de Ro Ro com a poeta Ana Terra que assegurara sucesso comercial ao primeiro elepê da diva maldita. Veio, então, o escarcéu com Zizi Possi e a polícia. Se a coisa antes já não lhe era muito fácil, enfeiaria de vez a partir de agora.
Desbocada e irônica, abre o elepê “Escândalo” repetindo quatro vezes “perdoai-os, Pai, eles só sabem o que fazem”. Na estrofe seguinte, alude à birita — seu grande mal. “Eu quero uma cruz de pinho selvagem/ alguma bebida pra me dar coragem/ meu sangue ser água, matar minha sede”, vocaliza. Em seguida, com estilo, erotiza-se. “A droga do seu beijo/ até você me envenenar/ manchar a sua boca”, declama, no blues angelical “Na Cama”.
Três anos depois, em 1984, foi sequestrada por policiais. Contou ao repórter Danilo Thomaz, do jornal “Folha de S. Paulo”, em perfil publicado na “Ilustríssima”, que tentaram plantar drogas em seu carro. Como não conseguiram, acharam por bem sequestrá-la. Puseram Ro Ro numa viatura, depois a transferiram para uma outra e, por fim, a abandonaram numa vala. Quando deu por si, estava em uma sala do Instituto Médico Legal (IML).
Embora Nova República estivesse próxima, ainda se vivia sob ditadura. Lançou, em 1985, o disco “Eu Desatino”, no qual celebra a obra da cantora Janis Joplin. “Moça feia, gente fina/ Calores de heroína, garganta puro aço/ Moça linda, gente feia/ Que deu essa heroína diluída no seu braço”, vocaliza, em “Blue Janis”. A menção ao “açúcar marrom” causou pavor na censura, que seria extinta apenas em 1987, com a tramitação da Constituição Cidadã.
À “Folha”, Ro Ro lembrou que lhe aplicaram o método “telefone”, que consiste em agredir a vítima na altura dos ouvidos. A dor foi tamanha que desmaiou. Nessa época, já se conhecia a relação tumultuada da artista com a polícia carioca. Desde maconha no carro, acidente em Copacabana e brigas gerais, muito se falou dela na imprensa, porém não é possível elucidar o que é fato e o que é ficção nas reportagens, examinadas pelo DM.
Entre 1979 e 1985, Ro Ro publicou os primeiros seis títulos de sua discografia. São — não à toa — o suprassumo da obra roroniana. Desde então, a cantora segue em frente, mas sem fazer um disco por ano. Jogou-se aos pés do stoniano Ezequiel Neves em 93. Ele a dirigiu no show “Angela Ro Ro Ao Vivo - Nosso Amor ao Armagedon”, lançado pela Som Livre.
Fiz o primeiro disco, foi ótimo, vendeu bem, o segundo foi melhor ainda, show lotado, as músicas tocando no rádio, muito espaço na imprensa, todo mundo me paparicando, me adulando Angela Ro Ro, cantora
“‘Angela Ro Ro Ao Vivo’ foi o único disco lançado pela artista ao longo dos anos 90, década de forte turbulência emocional”, escreve o crítico Mauro Ferreira, no livro “Cantadas – A Sedução da Voz Feminina”. Ro Ro voltaria aos estúdios nos anos 2000 para gravar canções inéditas. Em 2006, lança “Compasso” e, onze anos depois, ressurge com “Selvagem”.
Rebelde, dispensou a balada “Malandragem”. “Falei: ‘Frejat (autor com Cazuza), a música é um barato. Tua guitarra sempre excelente. Genial. Mas que letra é essa? Quem sabe eu ainda sou uma garotinha, com meias 3/4, esperando o ônibus da escola, sozinha… Eu não vou gravar isso’”, conta, numa entrevista. Ouvindo agora na voz de Ro Ro: rock’n’roll total.