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Como Erasmo Carlos voltou às paradas com canção lançada em 1971

Diário da Manhã detalha como Erasmo foi do iê-iê-iê às músicas politizadas

Tremendão na capa do lendário disco “Carlos, Erasmo”, de 1971 - Foto: João Castrioto/ Divulgação Tremendão na capa do lendário disco “Carlos, Erasmo”, de 1971 - Foto: João Castrioto/ Divulgação

Fazia sol lá fora. O celular tilintou às duas da tarde. Era Erasmo Carlos, o cérebro da jovem guarda, o homem que não queria conversa com quem não tinha amor, o gigante gentil.

“Não estamos tratando a Jovem Guarda direito. Temos que dar educação e cultura, que é a base para um futuro melhor”, me disse, entre doçura e agrura, o agora redescoberto cantor. As pessoas zarpam das salas de cinema, nas quais “Ainda Estou Aqui” ultrapassou o segundo milhão de espectadores, trauteando certa canção lendária publicada em 1971.

Pérola dos camaradas Erasmo e Roberto Carlos, “É Preciso Dar um Jeito Meu Amigo” se volta à penúria, ao desamparo e às incertezas provocadas pela ditadura, pelos gorilas e pela repressão. “Estou envergonhado/ com as coisas que eu vi/ mas não vou ficar calado/ no conforto acomodado como tantos por aí”, vocaliza, escoltado por uma guitarra psicotrópica.

Felizmente, é preciso dizer que a canção contextualiza sob perspectiva estética o longa-metragem de Walter Salles. Enquanto a pólvora fardada ameaçava a vida, havia música corajosa sendo gravada. A criatividade não se esgotava. Atrai-nos ainda hoje, uma vez que a canção parte da trilha sonora aparece dentre as 50 mais ouvidas no streaming.

“É Preciso Dar um Jeito Meu Amigo” saiu no elepê “Carlos, Erasmo…”, editado em 1971. “As pessoas acham que nesse disco eu indiquei e sugeri caminhos pra música brasileira. Não fiz com essa intenção. Fiz como se fosse normal. Fico lisonjeado de considerarem esse disco tão bem”, me confessou o artista, falecido no dia 22 de novembro de 2022, aos 81 anos.

Quando acabara o programa “Jovem Guarda”, em outubro de 1968, Erasmo se viu perdido na poeira dessa estrada triste, como cantaria na reflexiva “Sentado à Beira do Caminho”. Ao produtor Carlos Imperial, o artista assim definiu o movimento do qual se tornara cérebro: “O tropicalismo é a jovem guarda adulta e politizada, é a música brasileira universal.”

Na segunda metade dos anos 1960, o soul de Otis Redding disseminava lá fora sopros metálicos e suingues graves. Erasmo, antenado às novidades, foi tragado por essa música do orgulho negro. Desorientou-se também quando escutou Gilberto Gil e seu samba “Aquele Abraço”, a ponto de vender a casa paulistana, pegar o violão e regressar ao Rio de Janeiro.

Instalado em Copacabana, o jovem-guardista juntou a namorada Narinha, a atriz Leila Diniz e o semanário “Pasquim” em “Coqueiro Verde”, lançada no elepê “Erasmo Carlos e os Tremendões”, de 1970, que marca início de sua fase adulta. Até o fim da vida, dizia-se feliz por ter “uma pontinha” na criação do samba-rock, gênero identificado com Jorge Ben Jor.

Outro artista enlouqueceu Erasmo de imediato: Milton Nascimento. “Puta que pariu!”, vociferou, quando o assistiu pela primeira vez, em 1970. “Era novo, muito forte, bonito, um tropicalismo sem Carmem Miranda, com cheiro de campo, com montanhas no lugar da maresia”, conceitua, num trecho pinçado da autobiografia “Minha Fama de Mau”, de 2008.

Dessa forma, ladeado pela cena tropicalista e pelo existencialismo, o artista gravou “Carlos, Erasmo…”, seu disco mais ouvido nas plataformas de áudio. De Londres, onde estava exilado, Caetano Veloso lhe presenteou com o samba-rock “De Noite na Cama”. A voz de Marisa Fosse, do grupo psicodélico O Bando, sensualiza na faixa “Masculino, Feminino”.

A guitarra de Lanny Gordin evoca clima ditatorial daquele Brasil de 1971, alterando o estado de nossa consciência com inebriante arranjo. Quem o assina é Manoel Barenbein. Sob direção de Paulo de Tarso, a banda era formada — além de Lanny — por Sérgio Dias (guitarra), Liminha (baixo e guitarra), Ronaldo Leme (bateria), Régis Moreira (piano), Oswaldo Barro (cuíca), Dirceu Medeiros (berimbau) e Sérgio Fayne (violão).

Com guitarra sibilante, “Dois Animais na Selva Suja” metaforiza sexo, a partir de imagens como “vamos fazer o nosso lar/ onde o caminho cansar/ nosso corpo, nossa vida” ou “eu vou fazer de você/ a ponte erguida pro outro lado da vida”. Já “Gente Aberta” mostra Erasmo dispensando conversas com quem não tem amor. “Se o amor me chamar, eu vou.”

Erasmo Carlos, sob o pulso roqueiro da guitarra distorcida, reprisa a composição “Agora Ninguém Chora Mais”, publicada por Jorge Ben Jor seis anos antes. A inspiração bíblica acentua sotaque gospel: Erasmo e Roberto Carlos e a tal “Sodoma e Gomorra”. “Mundo Deserto”, outra da dupla de parceiros, é temperada pelo som metálico da seção de sopro.

Longe de querer santa a mulher amada, Erasmo revela amadurecimento ao versar sobre desejo. “Sei que meus braços/ são pedaços de uma manta/ quando eu te abraço/ mas eu não te quero santa”, canta, emendando com o soul “Ciça, Cecília”. Aqui, novamente, há menção ao “Pasquim”, enquanto “Em Busca das Canções Perdidas nº 2” psicodeliza ouvinte.

O arranjador Rogério Duprat orquestrou “Maria Joana”, composição que alude à maconha, e “26 Anos de Vida Normal”, manifesto contra a mecanização da vida no capitalismo. Erasmo, como se escuta em “Carlos, Erasmo…”, criou obra atemporal. Gente certa é gente aberta.

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