O poder transformador da leitura é um consenso da sociedade. Tanto é que não faltam frases prontas sobre o tema, a exemplo de “desligue a TV e vai ler um livro” ou a “leitura engrandece a alma”. Porém, será que se têm ações, práticas e políticas públicas que realmente propiciam uma educação para incentivar leitores?
Para muitos estudiosos de literatura, a resposta é não. Mas por quê? Ora, diversos fatores influenciam isso, tais como a desigualdade social, a falta de investimentos em políticas públicas, a desvalorização dos professores e até a instauração de certo “pânico moral“, que tem gerado casos de repressão à literatura, como o que se viu em torno do romance "O Avesso da Pele”, publicada taxa de “obscena” por cena de sexo e linguagem taxada como pornográfica.
Como anda a prática de leitura em Goiás? Um levantamento feito pela 5ª edição da pesquisa Retratos do Brasil, com dados garimpados em 2020, mapeia como é a relação dos goianienses com a leitura. O levantamento considera leitor aquele que leu - inteiro ou em partes - pelo menos um livro nos últimos 3 meses.
Dentro dessa pesquisa, por exemplo, 68% dos entrevistados disseram que gostam de ler. Mas apenas 11% frequentam bibliotecas. O balanço revelou ainda que a maior dificuldade dos goianienses em relação à leitura está em não compreender a maior parte do que lê ou não ter paciência para a literatura. Onde, então, está o problema e como solucioná-lo?
Para a professora de literatura e escritora Eugênia Fraietta, para aumentar esses números e diminuir o desinteresse em torno da leitura, os brasileiros se esbarram ainda com alguns desafios. Ela cita, por exemplo, questões como desigualdade de oportunidades causada por abismos socioeconômicos e que geram a dificuldade de acesso.
“Definitivamente, a prática da leitura é elitizada e, em minha opinião, nada democrática, e, portanto, não contribui, como está estabelecida, como um instrumento de conscientização crítica e libertária social, política e artística”, salienta a professora ao Diário da Manhã.
Eugenia acredita que, para reverter esse cenário, se deve pensar em políticas públicas culturais e educacionais consistentes que priorizem o conhecimento e a leitura crítica. “Essa mudança passa por escolhas e manobras políticas muito profundas, muito radicais.”
Sobre a leitura no Brasil e em Goiás, a professora Tarsilla Couto de Brito afirma à reportagem que não acredita no clichê de que o brasileiro lê pouco ou é ignorante. “Isso não faz parte da realidade, pelo menos da que eu vivo”, diz. Assim como Eugênia, Tarsilla crê que deve haver investimento na educação para estimular - e formar - novos leitores.
“Ou investe na formação continuada e em bons salários para professores, que é o primeiro leitor, ou nossa educação vai ser um fracasso. Por isso acredito que tudo é responsabilidade do Estado”, acredita Tarsilla, que é professora de literatura na Faculdade de Letras da UFG.
Liberdade
Outro desafio, ainda de acordo com a professora Tarsilla Couto de Brito, é a repressão de certas obras literárias nas escolas. Há décadas, contextualiza, existem casos de proibição de livros considerados impróprios no Brasil e mundo afora. O caso mais recente foi a retirada da obra “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório. O livro, vencedor do Prêmio Jabuti em 2021, faz parte do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD).
Foi incluído na lista de leitura do ensino médio em 2022 e trata-se de um romance sobre identidade e as complexas relações raciais, sobre violência e, sobretudo, negritude. Porém, um ofício da Secretaria de Educação do Paraná mandou recolher todos os exemplares para análise, já que determinados trechos seriam inadequados para estudantes do Ensino Médio. Escolas de Mato Grosso do Sul e Goiás seguiram pelo mesmo caminho.
É importante destacar que a adesão às obras do PNLD é voluntária e as escolas podem escolher quais livros indicados pelo programa serão recebido. Segundo a Secretaria de Educação do Estado de Goiás (Seduc), o recolhimento teve a finalidade de analisar o livro “quanto ao atendimento da proposta pedagógica da rede pública estadual de ensino” e, assim, decidir se o material “poderá ou não ser distribuído”.
Pela repercussão do caso, as vendas de “O Avesso da Pele” aumentaram em 400% na Amazon. Além desse caso, ano passado a Universidade Rio Verde, no sudoeste goiano, mandou retirar da sua lista de obras literárias para o vestibular de medicina o livro “Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus Lindos Lábios”, livro celebrado de autoria do escritor Marçal Aquino. A instituição decidiu pela exclusão depois de o deputado federal Gustavo Gayer (PL) publicar vídeo nas redes sociais acusando o romance de ser “pornográfico”.
Outro caso famoso de livros proibidos nas escolas é da obra “Trópico de Câncer”, publicado pelo escritor Henry Miller, em 1934. O livro foi imediatamente proibido em todos os países de língua inglesa. Tachado como pornográfico, assim como seu sucessor “Trópico de Capricórnio”, só foi liberado nos Estados Unidos e na Inglaterra nos anos 1960, aclamado como parte da revolução sexual e pelo esforço do editor e poeta Lawrence Ferlinghetti, que recorreu à Justiça para conseguir publicar “Uivo”, de Allen Ginsberg.
Já em Salvador, Bahia, as autoridades do Estado Novo, ditadura comandada por Getúlio Vargas, queimaram em uma fogueira 1,8 mil livros supostamente simpatizantes do comunismo. A maioria era assinada por Jorge Amado, incluindo 808 exemplares de seu recém-lançado Capitães da areia.
“Repressão atrapalha formação de novos leitores”
Em entrevista ao Diário da Manhã, a professora da Faculdade de Letras da UFG, Tarsilla Couto, explica que a repressão de obras literárias ajuda a enfraquecer o hábito da leitura, já que se instaurar um espécie de “pânico moral” nos leitores em formação que, por sua vez, começam a ter medo ou preguiça de determinadas obras.
“Se a gente coloca um pouco de fogo no paiol, falando mal de algumas obras e autores, dizendo que é pornográfica, engajada, de baixo calão ou que não é uma literatura para família, o que teremos vai ser repressão e uma auto-repressão, que resulta em uma indisposição para leitura”, prevê.
A retirada de “Avesso da Pele” do PNLD, para Tarsilla, é uma estratégia vinda do que chama de guerra cultural que se instaurou no Brasil na última década para aplacar as grandes conquistas em termos de direitos humanos. “A repressão trata-se de uma reação às pautas antiracistas, às pautas que condenam feminicídio, que condenam misoginia e que oferecem direitos a casais homoafetivos”, diz.
Em relação à interferência dos estados brasileiros, nas obras da lista do Plano Nacional de Livros Didáticos (PNL), a professora acredita que não deve existir. “No MEC, existe uma equipe de professores altamente qualificada, que passou por anos estudando e trabalhando para montar determinadas listas de livros que vão para as bibliotecas públicas. Os governadores não devem interferir nos livros do PNL”, ressalta.