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Como obra de Machado de Assis espelha sociedade brasileira

Todavia inicia de forma avulsa a reedição das obras completas publicadas por Machado de Assis, em projeto editorial audacioso que estimula debate sobre autor

Escritor debateu o Brasil em livros que se tornaram fundamentais para a cultura - Foto: Correio da Manhã/ Arquivo Nacional Escritor debateu o Brasil em livros que se tornaram fundamentais para a cultura - Foto: Correio da Manhã/ Arquivo Nacional

Machado de Assis morreu há 115 anos, mas continua lido pelos jovens, estudado na academia e debatido na imprensa. Logo, falar desse defunto autor resulta necessário. Mira-te: a Todavia põe nas livrarias as obras completas de Machado no dia 10 de março.

São 26 volumes — cinco deles já em pré-venda. Por ora, “Os Deus de Casaca”, “Crisálidas”, “Memórias Póstumas”, “Papéis Avulsos” e “Dom Casmurro” estão sendo anunciados fora daquela caixa publicada no ano passado que se materializou em projeto editorial ambicioso.

Idealizada pelo professor Hélio Seixas Guimarães, a coleção traz as obras-primas criadas por Machado em todos os gêneros textuais a que se dedicou em 69 anos de vida. Desde a estreia, em 1861, com “Desencantos”, ao último romance, “Memorial de Aires”, lançado em 1908.

Dentre esses títulos, a maior surpresa pelo visto é “Terras”, volume extra no qual o escritor narra os anos de serviço público. A caixa, fruto de parceria entre Todavia e Itaú Cultural, revela ainda textos estabelecidos em edições revistas por Machado, apresentações inéditas para cada livro e projeto gráfico onde está a tipografia primitiva das edições originais.

Ou seja, amostras do fascínio machadiano têm aqui e lá fora. Há cinco anos, por exemplo, as “Memórias Póstumas de Brás Cubas” saíram nos EUA. A tiktoker Courtney Novak ajudou o romance a ser campeão de vendas ao elogiá-lo em razão da sua narrativa humorística. Pouco tempo atrás, em 2023, o cineasta Julio Bressane levou à tela grande “Dom Casmurro”.

Mas nada se compara ao romance “A Vida Futura”. Publicado pelo escritor e jornalista Sérgio Rodrigues há quase três anos, a prosa ficcional descreve Machado vagando perplexo pelo campus de uma universidade pública neste século 21. Ele escuta as confabulações feitas por um grupo de amigos e se ataranta com expressões que nunca lhe ocorreu existirem.

Machado se entusiasmou com as mudanças produzidas pelo desenvolvimento tecnológico de seu tempo. Ainda jovem, filho de mãe imigrada dos Açores portugueses e pai pintor alforriado, começou a escrever em jornais. Durante quatro décadas, expressou na imprensa ideias sobre o desenvolvimento de uma tradição literária que fosse sobretudo brasileira.

Para o autor, a literatura seria um componente intrínseco ao progresso social. “Machado de Assis desenvolve reflexões que estão inseridas nos debates sociais e políticos do Segundo Reinado, marcados por disputas pelo controle do Estado, revoltas contra a escravidão e um processo de intensa urbanização e modernização”, afirma a pesquisadora Odete de Assis.

Na sua dissertação de mestrado, defendida na Faculdade de Letras da UFMG em 2024, Odete cita o texto “O Jornal e o Livro”, publicado por Machado nas páginas do “Correio Mercantil”, em 1859. O autor, diz a estudiosa, defende a arte como forma de propagar ideias e atesta que toda revolução necessita expressar, por meio dessa via, sua legitimidade social.

Embora o Estado capitalista seja um balcão de negócios para as elites, tal qual a definição dos filósofos Karl Marx e Friedrich Engels, o escritor nascido no Morro do Livramento em 1839 percebia que os jornais eram mais eficientes do que o livro na difusão textual. Daí, ele ter apostado no formato dos folhetins. Daí, ele ter se dedicado ao ofício da crônica.

Odete conta, em sua pesquisa acadêmica, que as reflexões machadianas nesse momento histórico relacionam-se com a função social da jovem imprensa naquela sociedade brasileira, num processo de modernidade à semelhança ao executado na Europa pós-Revolução Industrial — embora operado sob bases econômicas, sociais e políticas diferentes.

Definindo-se “um escriba das miudezas”, Machado de Assis se inicia na publicação livresca a partir das peças teatrais, aos 22 anos, com “Desencantos”, de 1861, em cujo drama retrata a história da viúva Clara de Sousa. A personagem vive às voltas porque tem de escolher entre dois pretendentes. Saiu em um tempo que ideais românticos circulavam pelo Brasil.

Outro título dessa faceta machadiana dramática, também em pré-venda pela Todavia, é “Os Deuses de Casaca”. São sete personagens da mitologia clássica, descidas do Olimpo, deparando-se com a vida moderna, homens vestidos de casaca, tempo e espaço não determinados. A vida amparada na palavra. Uma fotografia de 1866, essa peça.

Poeta

Machado foi ainda poeta, como se lê em “Crisálidas”, de 1864, e estabelece na obra equilíbrio entre as formas, os assuntos clássicos e as ideias românticas. Cria uma tensão, tensão muito peculiar, aliás: seus escritos combinam referências antigas, modernas e contemporâneas.

Em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, o escritor abre-alas para o realismo na literatura brasileira. Brás Cubas, o defunto autor, narra em primeira pessoa sua vida. O personagem é um homem de elite, todavia coleciona fracassos: “Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas.”

Nesta obra, logo em seu princípio, Machado lança um olhar galhofeiro para os endinheirados do século 19. Às vezes, no entanto, suas descrições chocam o leitor, especialmente no instante em que o narrador, aos 6 anos, relata ter quebrado a cabeça de uma escrava porque negou-lhe “uma colher do doce de coco que estava fazendo”. A zombeteria machadiana aparece assim que Brás Cubas rememora os estudos na Europa.

“A Universidade esperava-me com suas matérias árduas, e não sei se profundas; estudei-as muito mediocremente, e nem por isso perdi o grau de bacharel”, observou o narrador, indicando que o pai casou-o com a filha de um homem influente. A moça, por sua vez, escolheu outro. “Virgilia comparou a águia e o pavão, e elegeu a águia”, galhofou-se.

Quando jovem, Brás Cubas apaixonou-se pela cortesã Marcela: “Amou-me durante quinze meses e onze contos de réis.” O narrador, então, morreu aos 64 anos. “Memórias Póstumas de Brás Cubas” demonstra que Machado de Assis tinha olhar atento às questões sociais de seu tempo. Essa obra e as outras quatro têm muito a nos dizer neste século 21.

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