Flanamos por aí e repartimos sentimentos festeiros. Vagamos pela avenida, dentro do carnaval, observando despojos de serpentina e confetes: bisbilhotamos alegremente a folia e curtimos cada sabor adocicado dessa esbórnia. Alegramo-nos de seu cheiro, de sua cor, de seu gosto, de sua música e de sua dança. Já dizia o cronista Antônio Maria, boêmio inveterado e notívago profissional: “o carnaval é uma necessidade temperamental do povo”.
Na arte literata, leio pelas palavras do escritor Humberto Werneck, o espírito carnavalesco estimulou belas crônicas. Maria, o nosso bom Maria, declarara naquele fevereiro de 41 que a ressaca veio antes da farra - restando oito dias para os foliões saírem à avenida, uma confusão doméstica o levou para o xadrez. Clarice Lispector confessara que pouco participava da festança, limitando-se a contemplar “ávida, os outros se divertirem”. E Paulo Mendes Campos, sempre poético, recordara-se das “lembranças pesadas de um forrobodó”.
Valorizar hábitos, criar memórias e proporcionar a liberdade pela cultura popular é a razão do carnaval. De olho nesse aspecto, em sua relevância histórica e na necessidade de representar a nossa gente, foi o que fez enredo da Associação Esporte Clube de Samba de Goiás, localizada na antiga capital goiana. Em 2022, a agremiação levou às ruas vilaboenses o tema “África: Suas Lutas e Seus Encantos”, num dos momentos mais efusivos da festa popular. Pode-se dizer que houve ali uma retratação simbólica pelo viés artístico.
Já a Associação Recreativa Escolas de Samba Beija-Flor de Goiânia, uma das mais tradicionais da Capital goiana, desfila hoje pela Alameda Botafogo, Setor Pedro Ludovico, ao ritmo de samba que homenageia a feijoada, prato símbolo da brasilidade. Conforme adiantou reportagem publicada pelo DM no último mês de janeiro, “Um Voo do Beija-Flor na Feijoada do Amor” foi criado pelos carnavalescos Flávio Delavega, Sueli Marques e Walber Mariano, enquanto o samba-enredo tem assinatura do compositor Itamar Corrêa.
Sempre engajada em homenagear a brasilidade, a escola venerou no ano passado a vida de Edson Arantes do Nascimento, o Rei Pelé. Também criado por Itamar, o enredo celebrou a carreira daquele que é o maior jogador de todos os tempos. Nascido em Três Corações, em outubro de 1940, Pelé se transferiu para o Santos nos anos 1950, em cujo clube vencera dez vezes o campeonato paulista. Ao lado de Garrincha, na Copa de 1958, fez um golaço contra a Suécia, na final: chapelou o marcador e, sem deixar a bola cair, emendou para as redes.
Por mais que seu talento fosse inquestionável, o Rei Pelé nem sempre foi visto assim pela mídia. Um estudo de mestrado desenvolvido na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP aponta que o craque, ao fazer sucesso, tornou-se uma figura importante na luta antirrascista. “Racismo que era pouco debatido e bastante ignorado pela imprensa”, observa o pesquisador Fernando José Lourenço Filho, no estudo. Portanto, como se vê, é difícil dissociar as escolas de samba das questões urgentes da sociedade.
Perspectiva emocional
Existe ainda a perspectiva emocional. Leonardo Bruno, pesquisador, diz que o enredo costuma ser o aspecto pelo qual o público começa reverenciar o carnaval. Na obra “Três Poetas do Samba-Enredo” (Cobogó, R$ 72,00), ele compara o samba com futebol. Escreve que, no esporte, vascaíno jamais irá torcer para o Flamengo, mas no carnaval, muitas vezes, é o contrário que ocorre. “O samba te leva a torcer por uma escola adversária!”, pontua Leonardo, que já biografou Zeca Pagodinho, Noel Rosa e Beth Carvalho, lendas do samba.
É o que se viu, por exemplo, nos desfiles das seis escolas cariocas: fantasias, adornos e alegorias falaram de nossa gente. Pela avenida, passaram Unidos do Porto da Pedra, com enredo que mostra o saber popular, e depois se sucedeu a Beija-Flor, escola de Niterói que contou a história de Benedito dos Santos, autoproclamado último imperador da Etiópia. Na sequência, a Sapucaí recebeu a Salgueiro, que mostrou a história do povo Yanomami.
Os povos originários se fizeram presentes na Grande Rio, com a atriz Paolla Oliveira à frente dos ritmistas, como rainha de bateria. Surgiu na sapucaí como onça. Grande momento. Com as tradicionais cores azul e amarelo, a Unidos da Tijuca - cujo Luciano Fogaça escreveu samba-enredo da escola goiana Lua-Alá - evidenciou “O Conto de Fados”, numa tentativa de levar o público a uma viagem por Portugal. Atual campeã, a Imperatriz Leopoldinense ficcionalizou obra do poeta de cordel Leandro Gomes de Barros, que narra a trajetória da cigana Esmeralda.
Luiz Antonio Simas, historiador e referência em cultura popular, lembra que o Brasil não inventou o carnaval, mas os brasileiros o vivenciam na sua forma mais plural. “Foi o carnaval que inventou um país possível e original, às margens do progresso de horror que nos constituiu. É perturbador para certo Brasil - individualista, excludente, raivoso, intolerante - lidar com uma festa coletiva, inclusiva, alegre, diversa, rueira. Tenso e intenso como lâmina e flor, o carnaval assusta porque nos coloca diante do assombro da vida”, diz, numa rede social.
O que esperar dos sambas-enredo da segunda
Mocidade Independente de Padre Miguel - 22h. Escola apresenta enredo “Pede caju que dou... Pé de caju que dá” que mostra a sensualidade do povo brasileiro por meio da fruta caju, popular em Goiás.
Portela - entre 23h e 23h10. Tradicional na avenida, apresenta neste ano enredo “Um Defeito de Cor” com o qual aborda romance da escritora Ana Maria Gonçalves e homenageia todas as mulheres pretas.
Unidos de Vila Isabel - entre 0h e 0h20. Será contada a ancestralidade de Oxalá. Samba-enredo “Gbala- Viagem ao Tempo da Criação” foi escrito por Martinho da Vila, símbolo de Vila Isabel.
Estação Primeira de Mangueira - entre 1h e 1h30. Homenageia ilustre torcedora da escola: a cantora e compositora Alcione. “A Negra Voz do Amanhã” percorre o legado da artista e destaca a cultura maranhense.
Paraíso do Tuiuti - entre 2h e 2h40. A escola leva à avenida enredo “Glória ao Almirante Negro” e conta, por meio do samba-enredo, história de resistência: marinheiro que se lutou contra os maus-tratos e má alimentação.
Unidos do Viradouro - entre 3h e 3h50. Escola tem o enredo “Arroboboi, Dangbé”. Celebra a cobra sagrada dos africanos. Mito afirma que serpente ganhou batalha no século 19 e se tornou deusa para o povo.