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Conheça Gabriel Almeida, artista que pinta sociedade memística

Uma das telas de Gabriel, ‘No Limite da Morte’, retrata momento em que Leila Lopes fala sobre a longa e afetiva narrativa vivida em acidente

Óleo sobre a tela: artista visual retrata atriz Leila Lopes em complexo trabalho de pintura - Foto: Divulgação/ Acervo Pessoal Óleo sobre a tela: artista visual retrata atriz Leila Lopes em complexo trabalho de pintura - Foto: Divulgação/ Acervo Pessoal

Gabriel Almeida começou a pintar, pintar, pintar… De repente, toma forma o rosto, os cabelos vão escorrendo pelo pescoço, os olhos estão desenhados, as sobrancelhas perfeitas, o vermelho da roupa é revelado. Quem nasceu no final dos anos 80, se fizer algum esforço, se lembrará da atriz Leila Lopes. Caso não consiga encontrar nada nas gavetas da memória, aí o recomendável mesmo é recorrer ao Youtube. Procure por “Leila Lopes no limite da morte”.

Afora as risadas ao escutar e ver o vídeo de 4 minutos e oito segundos - reação perfeitamente natural -, o leitor verá Leila contando quando tudo mudou numa “tarde com um lindo azul que brilhava às 17h do dia 19 de dezembro de 1999”. Até que, sem mais nem menos, avisa à empresária Berenice Lamonica, numa serenidade pouco usual à grave situação em curso: “Se segura, Berenice, nós vamos bater”. “Depois, nada mais se lembra”, emenda.

Uma das telas mais interessantes de Gabriel, “No Limite da Morte”, retrata momento em que Leila fala sobre a longa e afetiva narrativa vivida por ela num acidente automobilístico. Na entrevista, como se estivesse no teatro interpretando Nelson Rodrigues ou Rachel de Queiroz, a artista rememora os caminhos percorridos na busca por algum detalhe que, porventura, possa ter-lhe escapado da memória. Era uma tentativa de reavivar a carreira, naufragada pelo entretenimento rasteiro. Leila Lopes estava emocionalmente abalada.

A seguir, Gabriel Almeida fala sobre o que levou-o a pintar memes, como essa técnica artística pode se tornar documento histórico, qual é ponto de partida ao garimpo de imagens que faz e os artistas que mexem com sua cabeça. Confira a íntegra do bate-papo aqui:

Diário da Manhã - O que te levou a pintar memes, essa linguagem tão característica da sociedade em rede?

Gabriel Almeida - Sou nativo do fim dos anos 80, a chamada geração “millenial”. As transformações nas telecomunicações (surgimento da internet doméstica, depois a banda larga, seguida dos smartphones) se deram no mesmo período de minha passagem da infância à vida adulta. Sinto que as mídias e as formas que consumimos ajudam a moldar comportamentos e percepções de mundo. Dessa forma, me entendendo como produto do meu tempo, vejo o quanto dessas linguagens habita meu imaginário. Sou um assíduo consumidor/colecionador de imagens virais desde que tomei conhecimento do termo “meme” em 2008. A ideia de um repertório humorístico autônomo, descentralizado e sem limites definidos me arrebatou e me tomou muitas horas de vida na frente de telas luminosas.

DM - A pintura, se olharmos à história, se torna documento de grande relevância a pesquisadores entenderem determinado período histórico. Qual é seu objetivo ao retratar memes que se tornaram clássicos, como o de Vanessão ou Leila Lopes?

Gabriel - Fui motivado inicialmente por uma forte sensação de que essas imagens deveriam ser pintadas, ainda não tinha claro de maneira racional para onde isso poderia me levar, mas acredito que as descobertas artísticas brotam da incerteza, somada à uma curiosidade profunda, uma vontade de “pagar pra ver”. Iniciei essa pesquisa coletando print screen de alguns vídeos brasileiros “icônicos” desse universo dos memes, dando origem à série “Eminências Tragicômicas”.

A ideia era de trazer pro mundo material essas imagens fugazes, existentes apenas na forma de dados digitais. Ao pintar esses frames, percebi que, apesar dos vídeos originalmente serem carregados de humor, as pinturas que surgiam traziam uma melancolia, uma potência angustiante, me levando a repensar o humor desses conteúdos: por que rimos tanto de algo e esquecemos que antes da imagem, existe uma pessoa em uma situação, tendo sua imagem consumida pelo puro prazer imediato?

DM - De qual ponto você parte para garimpar, selecionar e pintar? Como se dá esse trampo todo?

Gabriel - Os primeiros garimpos rolaram a partir de minha memória: passei a listar os memes e vídeos que conseguia me lembrar, que me marcaram de alguma forma. A pesquisa foi tomando mais corpo e passei a estar vigilante em toda e qualquer incursão pela internet. Não só os vídeos virais e memes mas todo e qualquer conteúdo visual digital passou a ser um possível fragmento para uma pintura. Atualmente, além das “eminências tragicômicas” tenho desenvolvido composições caóticas, super saturadas, das quais acúmulo sobre a superfície da tela de pintura miríade de “artefatos digitais”, criando cenários carregados de imagens que por vezes fazem sentido juntas, por vezes não, como um sonho febril.

DM - Quando você teve o insight para se debruçar nesse tipo de material, a meu ver tão original e também necessário para que tenhamos maior entendimento sobre a sociedade em rede?

Gabriel - Foi no ano de 2019, frente a um cenário de dissonâncias ideológicas, conflitos, excessos e mentiras que senti um ímpeto de mergulhar nesse universo visual a partir da experiência da pintura. Tive uma forte intuição de que essas imagens deveriam ser pintadas e, partindo dessa sensação, passei a selecionar esses conteúdos e dedicar horas e dias observando esses pedaços encontrados, estudando cor, a fim de simular efeitos de vídeos e qualidades distintas de gravações. O que me interessa nesse jogo entre imagem digital e pintura analógica é que desse contraste sempre surgem coisas novas e instigantes.

DM - Quais são os artistas que te formaram?

Gabriel - Acho que meu trabalho deve muito à Pop Art e ao ready made, de Duchamp, além de pintores figurativos mais contemporâneos, como Luc Tuymans, Gerhard Richter e Peter Doig. Dos brasileiros, uma grande referência é Nelson Leirner, que traz através do excesso e senso de humor um olhar para a iconografia barata e popular nacional através de pequenos objetos justapostos, penso que faço algo um pouco parecido, só que com “objetos digitais”.

DM - Imagino que haja uma dificuldade em comercializar pinturas complexas de memes em museus e galerias. Como fazer para driblar o senso artístico padrão dessas pessoas?

Gabriel - Eu acredito que toda escolha artística é uma aposta em algo, um tiro no escuro, não acredito em um rumo certo ou errado de se conduzir uma pesquisa de arte. Porém, tenho como princípio que as escolhas devem ser genuinamente suas, a partir dos seus gostos e desgostos, suas dúvidas, medos e curiosidades. Tem que ser a pulga atrás da tua orelha que vai te mover do conforto, te colocar em estado de criação.

Eu reconheço que ainda existe uma certa resistência por parte de algumas esferas do meio artístico, essa é uma abordagem nova de uma linguagem nova. Vejo a pluralidade de formas de falar sobre o mundo como uma riqueza para o cenário artístico nacional. Existe toda uma iconografia a ser registrada e re-imaginada através da pintura passando na frente de nossos olhos todos os dias. Minhas pinturas ao mesmo tempo que causam estranhamento, despertam curiosidade nas pessoas, mas elas dificilmente passam despercebidas.

DM - O que espera da Fargo neste ano?

Gabriel - Eu espero que muita gente passe por lá e confira meu trabalho de perto. Acho que vai ser uma ótima oportunidade para os artistas, as galerias e também para o público de fruir das artes visuais em suas diversas formas de expressão e linguagens.

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