Hirayama está no chão, deitado. Ouve Lou Reed, brilhante letrista de rock, integrante do Velvet Underground e homem que perseguia aquele dia perfeito. Entre cotovelos escorados no chão e olhar preso ao teto, o personagem interpretado pelo ator Koji Yakusho tem feição reflexiva. Dispensa a ilusão capitalista dos bens materiais. Apenas quer escutar Rolling Stones, curtir Patti Smith, admirar Otis Redding. E, se possível, apreciar boa literatura.
Pela manhã, desperta e, logo cedo, apanha sua van, que dirige até o trabalho: limpar banheiros públicos com a mesma perfeição de Keith Richards construindo seus acordes. Música, literatura, fotografia. Zelador obediente. Toaletes públicos de Tóquio. Numerosos toaletes públicos de Tóquio. À medida que nos juntamos a Hirayama nessa rotina, vemos encontros inesperados revelando um passado oculto em sua vida feliz e harmoniosa.
Vencedor do último Festival de Cannes pela atuação de Kôji Yakusho, ator que interpreta Hirayama , “Dias Perfeitos” começou a surgir quando o diretor Wim Wenders recebeu convite para fazer uma série de fotos nos banheiros japoneses. Esse material, disseram-lhe, poderia ser usado no futuro, talvez num curta ou, quem sabe?, até mesmo num longa-metragem. Os toaletes, em Tóquio, são conhecidos pelo design e pela alta tecnologia.
Wenders achou interessante. “A esperança era encontrar um personagem através do qual pudesse compreender a essência de uma cultura japonesa acolhedora, na qual os banheiros desempenham um papel totalmente diferente da nossa visão ocidental de saneamento”, reflete. O diretor faz uma comparação. “Banheiros não fazem parte da nossa cultura. São a encarnação da ausência. No Japão, são pequenos santuários de paz e acolhimento.”
Eis, então, Hirayama: escolheu viver outra vida, de simplicidade e modéstia. Dedicado e feliz com os poucos bens materiais que possui, gosta de sair com sua máquina fotográfica para clicar árvores e se dedicar à leitura dos seus livros de bolso. Já o K7, fiel companheiro do protagonista, foi salvo na juventude. “Sua preferência musical também nos informou sobre o título, quando Hirayama um dia ouve ‘Perfect Day’, de Lou Reed”, revela Wenders.
Ao viajar para Tóquio, capital japonesa, Wenders conheceu o elenco dos seus sonhos. “Vi esses lugares, todos localizados em Shibuya, que adoro. Aqueles banheiros eram muito lindos para ser verdade. Mas não era sobre eles que o filme seria. Isso só poderia se tornar um filme se conseguíssemos criar um zelador único, um personagem real e verdadeiramente verossímil”, diz o célebre diretor alemão, confessando que imaginava alguém numa posição privilegiada. “Que tivesse, sobretudo, um passado rico e que caiu profundamente.”
Dirigido pelo cineasta Wim Wenders, “Dias Perfeitos” é um filme poético. Docemente poético. Retrata um homem já sessentão perseguindo a felicidade. Durante o último Festival de Cannes, realizado em maio do ano passado, Wenders descreveu sua obra como uma jornada de alguém que procura a felicidade. É um paraíso da tranquilidade, um oásis longe do mundo analógico, numa era de emoções líquidas - afinal, tudo se encerra no Instagram.
Essa tal felicidade
Para Wenders, Hirayama leva o espectador a esse reino de felicidade. “Se ele vê o mundo através dos seus olhos, nós também vemos todas as pessoas que ele encontra com a mesma abertura e generosidade: há o seu preguiçoso colega de trabalho Takashi e sua namorada Aya, um morador de rua morando em um parque onde Hirayama trabalha todos os dias, sua sobrinha Niko que busca refúgio na casa do tio, ‘mamãe’, dona de um modesto restaurante onde Hirayama frequenta seus dias livres, seu ex-marido e muitos outros.”
Celebrado por uma filmografia de peso, Wenders diz que não faria sentido gravar noutra cidade que não fosse a capital japonesa, pois foi na metrópole asiática que o longa-metragem começou a ser pensado. “Filmamos ‘Dias Perfeitos’ 60 anos depois de Ozu ter feito seu último filme, ‘An Autumn Afternoon’, em Tóquio. E não é por acaso que o nome do nosso herói é Hirayama”, afirma o cineasta, numa entrevista concedida em Cannes.
Um dos grandes nomes do cinema japonês, o diretor Yasujiro Ozu (1903-1963) entrou para a história como o “pai da rotina”. Era dono ainda de um estilo que consistia em ter uma câmera baixa e planos fixos, o que se transformou em sua assinatura artística. Dessa maneira, filmou questões ligadas à morte, à solidão e aos problemas familiares - como é possível observar, por exemplo, em “Era Uma Vez em Tóquio”, lançado em 1953. Outra obra essencial em sua filmografia, “Bom Dia”, de 1959, mostra protesto dos filhos contra os pais.
Wenders retorna, com “Dias Perfeitos”, filme aguardado pelos cinéfilos goianos, ao cinema de ficção. Ele é reconhecido como um dos principais expoentes do Novo Cinema Alemão, nome dado à produção cinematográfica que se tinha no país europeu durante os anos 1960, a partir dos diretores Alexander Kluge, Werner Herzog e Margarethe von Trotta. Influenciada pelos experimentos da Nouvelle Vague, essa geração queria contar histórias diferentes.
Após ajudar a libertar o cinema alemão do conservadorismo, Wenders fez “Paris, Texas”, clássico lançado em 1984. Em 1987, lançou “Asas do Desejo”, em que retrata a divisão poética em torno de Berlim, rachada pela polaridade do capitalismo versus comunismo. Nos últimos anos, tem se notabilizado como um artista multimídia e, ao enveredar pelo documentário, deixou legado com “Buena Vista Social Club” e “Papa Francisco - Um Homem de Palavra”. Nascido em agosto de 1945, Wim Wenders volta com tudo à ficção.
Dias Perfeitos
Duração: 2h05
Direção: Wim Wenders
Elenco: Reina Ueda, Koji Yakusho, Tokio Emoto
A partir de quinta nos cinemas