Documentário celebra arte de André Matos, o anjo do metal
Redação
Publicado em 5 de junho de 2023 às 18:05 | Atualizado há 4 meses
No dia 8 de junho será lançado o filme “Anjos Choram na Terra Sagrada de Andre Matos”, no canal https://www.youtube.com/. Documentário autoral sobre a vida e obra do maestro e metaleiro Andre Matos, a obra foca no vocalista brasileiro mais cultuado na cena musical internacional de rock.
O filme é uma produção do compositor, cantor e baterista Fred Le Blue, que dirigiu clipes do projeto Cpmversom de versões de clássicos do rock em português, como “Silent Man”, do Dream Theather, e “Wild Horse”, do Rolling Stones, e, mais recentemente, o filme “O Processo de Metamorfose de Geraldo V.” sobre Geraldo Vandré.
Este novo documentário sobre Matos é oriundo de um trabalho de pesquisa do arquivo público sobre o artista na internet. “É um tributo aos mais de 30 anos de trajetória do artista, que se acostumou em sua carreira com altos e baixos, talvez, em função capacidade vocal elástica, capaz de atingir os mais altos agudos da voz masculina”.
Dia 8 de junho de 2019, o cantor completou seu ciclo terrestre. Apesar de ter vivido somente 47 anos, o maestro paulistano deixou como legado a criação de três das mais importantes bandas brasileiras de sucesso internacional: Viper, Angra e Shaman. Em ambas, atuou mais do que como músico, mas também como líder de geração, influenciando ouvintes e muitos musicistas por sua polinização de estilos populares com eruditos e rockeiros.
Partindo da background do heavy metal melódico alemão, André foi responsável por experimentos sonoros desse gênero com a música clássica (medieval, gregoriana, renascentista, romântica e barroca), celta, afrobrasileira, indígena e indiana.
No disco “Holy Land”, de 1996, ele cria uma cartografia íntima sobre a descoberta da terra sagrada dos índios de Pindorama, besuntado de referências como samba e capoeira, ainda com Angra. Depois, “Ritual”, de 2002, com Shaman, o xamanismo mexicano é revelado ao grande público pela obra antropológica do brasileiro Carlos Castaneda. Trata-se de esforço de alteridade cultural, a partir do contato com diversos rituais religiosos de diversas culturas, para extrair o arquetípico-universal presente em todo o espectro da vida humana em diferentes paragens da Terra.
Avesso ao culto consumista e fetichista de personalidade, André Matos costumava interromper sua participação nos grupos co-criados para se lançar em um voo mágico rumo à novos projetos em ciclos de eternos retornos, mesmo que isso gerasse muita repercussão midiática negativa, em função do apego dos fãs, ou melhor, clãs, fiéis aos seus totens modernos.
Talvez, por isso, mesmo, o idealismo ocidental que prega, desde a Grécia antiga, a dissociação da alma do corpo, este último, sendo considerado desprezível, motivo que o faz merecer ser escravo daquele, talvez, tenha sido o único obstáculo psicológico que André não tenha conseguido superar, haja vista que sua morte precoce por infarto, parece estar ligada ao fato de ele ser hipocondríaco, insone e sedentário.
(Foto: Divulgação)
O que não é recomendável, em função, de ser uma rotina extenuante a de shows de longa duração por um músico de alta performance de metal, já em idade madura, onde o intérprete tem que primar pela excelência técnica, vez que a maioria dos ouvintes são músicos exigentes e ávidos por acrobacias musicais.
E além disso, diletantes críticos de arte, sempre a fazer comparações ácidas entre vocalistas da cena, principalmente, quando, esses fazem parte da história de um mesmo longevo grupo, o que, no metal, costuma ser a regra, talvez, porque as letras e imagens sonoras parecem se escorar em um passado ancestral, que empresta uma aparência de secularidade para as bandas.
A constante competição e eterna comparação de Angra com Shaman, que foram contempladas com duas bandas de nível excepcional, apesar das constantes lavações de roupa suja em programas de rádios e mídias digitais também, estimulou a produção de discos memoráveis do Angra, mas, sobretudo, do Shaman, que, em 2002, aprofundou no disco “Ritual”, a experiência de interculturalidade de “Holy Land”.
(Foto: Divulgação)
A formação original da banda duraria somente até 2013, obrigando Andre a investir em seus discos solos e nas turnês comemorativas dos 20 anos dos dois primeiros discos com o Viper e os dois, com o Angra.
Um exemplo do campo minando entre os dois líderes se deu em 2016, quando, tanto André como Rafael, comemoraram os 20 anos do disco “Holy Land”, cada um com suas respectivas bandas.
A banda Angra, cada vez mais globalizada e empresarial, acabou perdendo um pouco da sua aura no Brasil, na esteira do caminho de alta reprodutibilidade e considerável desnacionalização do Sepultura –, apesar de que o paulistano Andreas Kisser, ao contrário de Rafael Bittencourt, atual membro-proprietário da marca e único remanescente da formação original do grupo, nem sequer foi um dos pioneiros da ex-banda mineira, formada pelos irmãos Cavalera, que eram vizinhos da família Borges (Clube da Esquina) no bairro de Santa Teresa, em BH.
Percebendo esse vácuo de representatividade interna, mesmo que, extraoficialmente, o novo ex-vocalista Edu Falashi -, que saiu em 2012, após o fiasco da apresentação do grupo no Rock n’ Rio -, passou a fazer turnês e discos com o repertório da sua fase do Angra e da fase andreeniana, o que gerou muitos ruídos de comunicação sobre direitos autorais de músicas e shows não ou mal pagos.
Por outro lado, em um país em que os grupos musicais autorais de rock costumam ter data de validade, é louvável que Rafael tenha tido resiliência e paciência coletivista de suportar o preciosismo de dois grandes carismáticos vocalistas por mais de 20 anos e aguardar 10 anos para recuperar o domínio sobre a banda, cujo nome era propriedade imaterial do primeiro empresário do grupo, Toninho Pirani.
(Foto: Divulgação)
No imaginário sociocultural dos fãs brasileiros, o vocalista Matos, também, por ser um pianista de mão cheia, é lembrado quase que, mensalmente, nos programas de rock no Youtube. Após sua morte, inclusive, foi realizada uma web-série e documentário quádruplo, produzido em parceria com sua família, no qual ele ganhou o cognome: “Andre Matos: o Maestro do Rock”.
Somando a esses esforços de valorização desse “muso” inspirador, “Anjos Choram na Terra Sagrada de André Matos” pode ser um interessante preâmbulo sobre a produtiva e conflitiva vida e a obra desse doce metaleiro e suas canções épicas atemporais, que, desde os 13 anos de idade, quando fundou o Viper, sonhou se tornar maestro e acabou reinventando o Rock.
“O filme surgiu da minha ligação afetiva com as músicas do disco Angels Cry e Holy Land”, diz diretor
Documentarista Fred Le Blue explica na entrevista a seguir a proposta de “Anjos Choram na Terra Sagrada de André Matos”, filme que procura reverenciar a obra de Andre Matos, vocalista das bandas Viper, Angra e Shaman que morreu há quatro anos.
Como surgiu a ideia do filme?
Le Blue: O filme surgiu da minha ligação afetiva com as músicas do disco “Angels Cry” e “Holy Land” da banda Angra, na época em que eu tocava bateria em bandas de rock nacional na cena musical em Goiânia. O primeiro álbum fazia uma fusão entre Bach e Helloween e o segundo, uma mistura ainda mais inovadora: barroco metaleiro com a música étnico-folclórica brasileira. Apesar do virtuosismo ser um chamariz inicial, o Angra, liderado pelo xamã Andre Matos, logo se tornaria um portal de reencantamento do mundo. A orquestração de partituras rebuscadas no rock com letras em inglês, mas sem deixar de ter abertura para experimentalismos para o cor-local brasileiro, parecia ser uma amostra antropofágica de quão longe a cultura brasileira poderia chegar, investindo nesta “indústria de metais pesados”. Na esperança de que esses bons exemplos pudessem se tornar um farol capaz de ressoar no cenário político e econômico do país, adentrava, antes do final do século XX, o microterritório de uma banda de heavy metal como uma forma de fazer parte de uma irmandade iniciática e cosmogônica, potencializadora de cidadania plena de direitos e deveres. Sempre pensava na relação do nome da banda paulistana com a usina nuclear homônima (Angra I e II), mas aquela, ao contrário dessa, funcionava perfeitamente e exportava energia para todo o mundo. Como energia atômica, a banda, em questão, tem seu lado tóxico também.
Qual a proposta conceitual do “Anjos Choram na Terra Sagrada de Andre Matos”?
Le Blue: A intenção era homenagear esse líder de geração que é o Andre Matos, ainda pouco conhecido no Brasil, talvez, em função de ser o heavy metal, um estilo muito especializado e segregado, e, além disso, cantado em inglês com imagens poéticas classicistas, por vezes, pouco acessíveis para o leitor médio. Nesse sentido, tentei traduzir com uma seleção de imagens e entrevistas sobre a passagem, cheia de oscilações de humor e genialidade, desse cometa sonoro que foi Matos, para que mais pessoas possam conhecer sua musicalidade angelical, mas também humana. E para os que já o conhecem, e estão na estrada musical, possam entender os dramas karmáticos vividos por ele, em função de conflitos interpessoais com a parte empresarial da banda Angra, para que, por um lado, sem perder a capacidade crítica de evitar os abusos alienantes da vida capitalista, por outro, evite-se a máscara da transcendência que muito pode custar ao corpo e às finanças de qualquer cidadão sonhador. Em todo caso, o dilema de pensar trajetórias de talentos brasileiros, o país do futuro que nunca vem, costuma ser sempre o fato de que o DNA cultural do Macunaíma cordialista latente em nós, costuma ser o nosso maior trunfo, mas também aquilo que nos coloca em parafuso, em face das grandes conflitualidades sociais e interpessoais, que afetam o psicológico dos indivíduos promissores, e, que, uma vez, internalizado, passam a atuar como elemento sabotador, dessa vez, de dentro para fora.
Como sua experiência musical com baterista-vocalista influenciou na iniciativa do filme?
Le Blue: Minha ideia era resgatar minhas origens também roqueiras e metaleiras que, em algum momento, foram interrompidas, pelo fato de eu não ter me desenvolvido, em termos de teoria e prática musical. Mas, também, talvez, muito em função do preconceito contra o gênero -, sobretudo, morando, em Goiânia, onde nem o pop rock se consolidou como música comercial e o underground local sempre a mimetizar Seattle -, inclusive, contra meu instrumento, a bateria, que para os ouvidos leigos, pode ser percebido como se fosse uma banda de thrash metal, mesmo que você esteja tocando bossa-nova. É claro que há uma questão racial e anticorporal nessa discriminação da orquestração rítmica (“cozinha” da música), muito associado no Brasil à africanitude cultural (sempre) braçal, o que faz pessoas da elite, mesmo nas medievais escolas e academias de música academicista e eurocêntrica, não considerar muito a batera como um instrumento laureado, o que mina seus espaços de treino e lugares de fala. Nos discos “Angels Cry” e “Holy Land” a percussividade brasileira é levada a extrema potência, o que servia como um treino mental das possibilidades criativas e performáticas do ritmo. Muitos anos depois, em 2021, fiz uma releitura do imaginário e musicalidade caiçara na obra de Dorival Caymmi através do co(a)nto de pescadores, intitulado “Suíte dos pecadores tecnológica civilização caiçara pós-caymmi-smetakiana”, que mescla Música Contemporânea, MPB, e Heavy Metal, mas utilizando exclusivamente percussões, porém, tocadas como se fosse bateria de rock.
Qual legado de Andre Matos para o Rock para você e para sua geração?
Le Blue: Andre Matos é músico ímpar: compositor, cantor, instrumentista, regente e líder. Na época que conheci os dois primeiros discos do Angra, tentava esboçar meus primeiros acordes como autor de canções. Mesmo que me parecesse longínqua qualquer possibilidade de me arriscar no gênero do metal, propriamente, as ambiências místicas e míticas de suas músicas e seus condiscípulos do Angra, sempre foram uma espécie de carro-conceito do que um músico de rock poderia se tornar em termos de performance e criatividade. Acabaram por me nortear nas esquinas da Avenida Música com o Beco da Antropologia, permitindo criar minhas próprias misturas alquímicas de ideias e gêneros, mas também entre ciência e arte, entreciências e entreartes, por meio do movimento cultural e cartográfico ARTetetura e HUMANismo e, depois, o ARTeteTURismo. A capa do disco “Holy Land” (mapa das grandes navegações na América) e suas músicas sobre um Brasil ainda sacralizado pela identidade territorial das inúmeras tribos indígenas, foram, em sua sempre fizeram parte do meu mapa mental de artes feitas no Brasil social e ambientalmente responsáveis. Em respostas a esses estímulos da pós-adolescência, muitos anos depois, em 2021, ainda no contexto de pandemia, gravaria meu primeiro disco, “Lua & Ana: lunáticas operetas do Vale da Lua para a SuperLua”, que foi, justamente, uma ode rock-operístico de amor mitológico entre dois entes naturais, que em muito remonta a experiência musicoterapêutica de transcendência mítica da escuta desses, literalmente, ontológicos, “dois primeiros discos do Angra”, com suas aglutinações de claro e escuro, de erudito e popular (MPB), de ópera e rock (nacional).
Em termos de história social e musical, esse mameluco Andre Matos, além de ter cocriado três maiores das cinco maiores bandas do Heavy Metal no Brasil (as outras são Sepultura e Dr. Sin), sem contar sua carreira solo e suas participações energéticas nas músicas relaxantes, sem guitarras, de Corciolli, o mago do new-age no Brasil, ele trouxe para o rock o ensinamento da importância do estudo musical como forma de aperfeiçoamento técnico -, o que acabei não seguindo ao pé da nota. Mas, o que fica mesmo, para além desse “teatro dos fatos” das intrigas de bastidores -. insuflado pelo contexto globalizado em São Paulo que forjou um individualismo e competitividade exasperante -, são as obras-primas que nos fazem mergulhar, áudioguiados por sua voz estridente, em uma Terra Sagrada onde os Anjos Choram, cada vez que esse xamã do Yin e do Yang, canta seus hinos ressonantes e acelerados de devoção ritualística à natureza e à humanidade.
“Anjos Choram na Terra Sagrada de Andre Matos” (BRA, 2023, 141 min)
Direção: Fred Le Blue
Canal: youtube.com/@arteteturaehumanismo
Link do filme: https://youtu.be/VhRT4TItNA