“Elis, a Musical” entra em cartaz no Rio Vermelho, em Goiânia
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 23 de janeiro de 2024 às 23:46 | Atualizado há 3 meses
Se Elis Regina morreu de súbito para o Brasil inteiro, aos 36 anos, ela se recusa a desaparecer ao morar na nossa memória. Lá se vão 42 anos daquela manhã em janeiro de 1982, quando sua voz calou-se. Calou-se, você sabe, é mera força de expressão: ainda a escutaremos, com o volume alto, de preferência. E Elis, blue como só a própria poderia ser, e tal qual era também Nina Simone, insiste em se metamorfosear a cada livro, a cada documentário, a cada montagem de “Elis, a Musical”, que entra em cartaz neste fim de semana no teatro Rio Vermelho.
Dois anos depois da peça estrear, em 2015, Elis ganhou mais uma biografia, agora pelas palavras do jornalista Julio Maria, em “Nada Será Como Antes”. Há descrições relevantes para a dimensão humana da cantora, que fez do sentimento dilacerado expressão musical com enorme importância para a música popular brasileira. Assim ela gravou, por exemplo, as atemporais “20 Anos Blue”, “Na Batucada da Vida”, “Como Nossos Pais”, “Romaria” e “O Bêbado e a Equilibrista”. Não deveria ser fácil carregar nas cordas vocais o peso da dor.
No ano passado, causou fascínio ver o maestro soberano da bossa nova ensinando que um arranjo só funcionaria se fosse simples, como ele fala no doc “Tom & Elis”, dirigido pelo cineasta Roberto de Oliveira. Para o músico, o exercício da composição exige mais borracha do que lápis, e as notas vocalizadas ao microfone, segundo Elis, precisariam expurgar suas próprias dores. São dois gênios, mas quase inviabilizaram a obra-prima “Tom & Elis”, disco às vias de se tornar um cinquentão, idade que atinge no próximo mês de agosto.
O clima estava tenso em Los Angeles, cidade situada na Califórnia, Estados Unidos, onde ocorreram as gravações do elepê. De saco cheio, Elis chegou a fazer as malas para retornar ao Brasil, furiosa que andava com as ideias jobinianas. Isso obrigou Roberto Menescal a apanhar um avião no Rio de Janeiro e, horas depois, chegar aos EUA, com o objetivo de acalmar os ânimos. “Quase se transformou no maior disco não feito da história”, diz João Marcelo Bôscoli, em depoimento pinçado no doc “Elis & Tom – Só Tinha de Ser Com Você”.
Então, se tudo já foi dito sobre Elis, por que devemos assistir “Elis, a Musical”? Meu palpite: com texto escrito por Nelson Motta, amigo e ex-namorado da cantora, a peça dramatiza episódios de uma curta mas turbulenta vida: início da carreira, relacionamento tumultuado com Ronaldo Bôscoli, gravação do mítico disco com Tom Jobim, união com César Camargo Mariano, a maternidade, a história do Brasil dos anos 50 até os 70. E, claro, a atriz Lílian Menezes vive a artista com pujança, interpretação pela qual recebeu prêmios merecidos.
Peça dramatiza episódios de uma curta mas turbulenta vida. Foto: Caio Gallucci/ Divulgação
Contudo, há que se lembrar que a relação de Elis tanto com Bôscoli quanto aquela junto de César Camargo ganhou nos últimos anos outra dimensão. O velho, no caso o primeiro, por ser fã de Frank Sinatra, João Gilberto e Tom Jobim, era notório mulherengo. Mas o que dizer de Mariano, pianista revolucionário ao usar o elétrico Fender Rhodes quando a regra ditava o acústico como aceitável? Bom, é certo que santo mesmo esse senhor de 80 anos nunca foi.
Grande encontro
Biógrafo de Elis, o jornalista Julio Maria afirma, em reportagem, que César Camargo supostamente implodiu um grande encontro da música: Elis Regina e Wayne Shorter, lenda do jazz. Isso nos leva a crer que a cantora sempre esteve sozinha, porém demorou para se dar conta. Daí ser aconselhável entender que, na verdade, a direção de Dennis Carvalho, importante nome da teledramaturgia brasileira, se esmera numa exagerada caracterização sentimental, ao menos quando “Elis, a Musical” trata de relacionamentos conjugais.
Nunca foi fácil para Elis ser aceita em certos círculos. Nos anos 60, quando se apresentava em locais como Beco das Garrafas, a cantora era ridicularizada pelos longos cabelos negros, taxados pelo fanfarrão Ronaldo Bôscoli de “cafona”. Depois disso, insistiam em compará-la com a musa Nara Leão, essa sim uma artista moderna, diziam os detratores. Ao lado de Jair Rodrigues, no programa televisivo “O Fino da Bossa”, alfinetava o iê-iê-iê pueril representado por Erasmo e Roberto Carlos – do qual Wanderléa, inclusive, fazia parte.
Isso contribuiu para que o magnata André Midani se preocupasse com a maior estrela de sua gravadora. Segundo o manda-chuva, diante do tropicalismo e do rock, Elis, aos 24 anos, estava ficando velha. O cúmulo foi quando a cantora participou da passeata contra a guitarra elétrica, em São Paulo, no Anhangabaú, pouco tempo antes do festival realizado em 1967. Designado por Midani a modernizar a música da cantora, o produtor Nelson Motta iniciou os trabalhos mostrando a esse vozeirão algumas novidades do momento.
Elis eternizada na capa do disco “Em Pleno Verão”, de 70: guinada na carreira. Foto: Divulgação
Em “De Cu Pra Lua”, Nelson lembra que apresentou à cantora o som de James Taylor e Carole King. Posteriormente, ouviram juntos Elton John e Crosby, Still, Nash & Young, bem como a bossa-soul “There Are The Songs”, em cuja audição Elis teve a ideia de chamar Tim Maia para gravar consigo em “Em Pleno Verão”, num dueto descrito pelo produtor como “duelo de excelência e suingue”. Embora continuasse morando com Bôscoli, a cantora reclamava dele à beça e, em um dia de lua cheia e chapada de mescalina, namorara Nelsinho.
Desde a estreia, em 2013, “Elis, a Musical” alcançou 360 apresentações e teve público de 325 mil espectadores durante turnê pelo território brasileiro. Sim, ainda vale a pena assistir ao espetáculo dirigido por Dennis Carvalho, com a atuação exuberante da atriz Lílian Menezes. Hoje cultuada e dona de obra politizada, Elis Regina jamais virará demodê. Ela tem aquela voz, só ela a tem, e é capaz de acalmar qualquer alma atarantada. Elis é totalmente musical.
Elis, a Musical
Sábado e domingo
27 e 28
Às 16h e às 20h (sábado)
Às 18h (domingo)
Teatro Rio Vermelho
R. 4, 1400 – St. Central
Ingressos a partir de R$ 25