“Ensino a quem dever”, brinca ator, que se escreve novo livro
Rariana Pinheiro
Publicado em 4 de junho de 2023 às 23:04 | Atualizado há 2 anos
Encontrar com Stepan Nercessian, 69, é se deparar com uma imensidão de histórias. As de seus personagens em novelas, filmes e peças de teatro, mas também as suas. Em seus mais de 50 anos de carreira, ele sempre vai parecer familiar. No ator conhecido – e bem humorado -, que também deu vida ao Chacrinha, em “Chacrinha: O Velho Guerreiro”, habita outros talentos, ou melhor personagens. Alguns já saíram de cena, como o do político, preocupado em fazer “Política com Arte”. Mas está bem vivo o Stepan altruísta.
Este está há 20 anos à frente do Retiro dos Artistas, instituição que acolhe artistas idosos que passam por dificuldades financeiras e emocionais. E nele ainda habita, cada vez mais, muito do garoto goiano, que estava procurando a irmã desaparecida na ditadura militar e acabou trabalhando no jornal “Cinco de Março”, que o ajudou em sua formação, após ser expulso da escola. Dessa experiência, nasceu o escritor que já lançou dois livros “Garimpo de Sonhos” e “Guia Prático Para Inadimplentes e Negativados”.
Um pouco de todas suas facetas, ele compartilhou com o Diário da Manhã, que contou com colaborações dos jornalistas Valterli Guedes e Sinésio Dioliveira, do cineasta Taquinho e dos artistas plásticos Vilmondes e Omar Souto, numa conversa na casa realizada na casa do jornalista Batista Custódio, em uma manhã de domingo. A seguir, os melhores trechos:
Diário da Manhã – Como ter trabalhado no jornal Cinco de Março influenciou a sua vida e a sua carreira?
Stepan Nercessian – Eu tive uma sorte grande de conhecer o seu Batista nas circunstâncias que eu conheci, porque várias coisas se costuravam nesse momento na minha vida. Eu estava no ginásio, era época de ditadura no brasil e fui levado até ele por Antônio José de Moura, que era amigo e nosso vizinho. Fui lá pela primeira vez para pedir ajuda para localizar a minha irmã mais velha, Armênia, que tinha sido presa e estava perdida.
Encontrei com Batista na porta. Contei para ele sobre minha irmã e ele escreveu o artigo “A Revolução do Nada” e, depois desse editorial, encontramos minha irmã. Em seguida, eu comecei a trabalhar no jornal, onde fazia de tudo. Era promovido e rebaixado conforme a dança tocava. Ficava na portaria, depois tive a oportunidade de ser auxiliar de revisor.
Era sempre esperado o dia de ter a chance de revisar o editorial do senhor Batista. Ao mesmo tempo eu fui expulso da escola, proibido de estudar, mas fui para a maior faculdade que eu poderia cursar, que era a redação do Cinco de Março. Ali eu aprendi tudo: a ler, poder escrever, poder conversar com pessoas mais velhas que eu. As maiores cabeças de Goiás estavam ali. Aquilo me deu uma base e formação para o mundo.
DM- Como era o clima da redação naquela época?
Stepan – Era incrível. O jornal era semanal, mas tinha um funcionamento que parecia de um jornal diário, de tanta coisa que tinha. Era uma efervescência. Tinha a parte cultural, intelectual, os articulistas e tinha o clima da reportagem ao vivo, dos acontecimentos. A gente aprendia que lutar pela justiça significava correr risco e sofrer diversas perseguições. Sr. Batista liderava tudo, mas fazia de forma com que cada um ali era responsável por aquele jornal estar, segunda-feira, nas bancas. Cada um sentia meio dono dele.
DM – E depois do Cinco de Março como foi o seu começo na vida artística?
Stepan – No meu primeiro filme, “Marcelo Zona Sul” (1970), ainda trabalhava no jornal. Ficava nessas idas e vindas. Ia pro Rio de Janeiro, voltava para Goiânia e queria ir para o jornal trabalhar. Uma vez, quando cheguei em Goiânia, sr. Batista estava preso. Fui visitá-lo. A vida já estava me levando para outro lado, mas sempre queria escrever. Mandava artigo, fiz um suplemento do Rio e mandava para cá. É bem visto, até hoje, nas universidades: fiz entrevistas maravilhosas com Raul Seixas, Carlos Vereza. Tinha desenhos, coisas gráficas.
DM – Foi dessa experiência que nasceu o Stepan escritor?
Stepan – Escrevi dois livros publicados e estou escrevendo outro. Devo isso ao Batista, que gostava da forma que escrevia e insistia para que não parasse nunca. Ele cobrou muito isso, e eu fugia disso. Ele dizia: ‘você pode fazer sucesso, mas depois quando você morrer você vai ser cobrado é pelo talento que Deus te deu de escrever e você não vai ter o que responder, então dá um jeito (risos)’. Isso ficou martelando na minha cabeça, até que pensei: o Batista tem razão é uma coisa que me causa muita felicidade e, talvez, sem pretensão nenhuma de falar, seja um dom verdadeiro, tão forte ou mais forte, do que ser ator.
DM – Como foi a inspiração para o seu primeiro livro ‘O Garimpador de Almas’?
Stepan – Ele conta a história de uma pessoa que vive atordoada, porque existem milhões de almas querendo falar com ela. E eu acredito nisso, que as almas querem se comunicar. Os espíritos querem passar mensagens e contar suas histórias. E é quase um livro de contos, cada um contando a sua história. Mas o que quis dizer com você garimpar é o susto que o escritor leva quando está escrevendo e está indo por caminhos que desconhece.
DM – O segundo livro, lançado esse ano, segue pelo humor?
Stepan – O segundo é mais prático, chama o “Guia Prático Para Inadimplentes e Negativados” (risos). E eu até falo que não faço a menor questão que leiam e nem emprestem, eu quero que comprem. E ali é uma mistura do mundo atual, que eu acho que tem muita brincadeira, que diz o quanto o mundo materialista sempre foi um ponto de massacre no ser humano. Mas, ao mesmo tempo, ensino algumas coisas para se virar, se cortarem a sua luz, pois, se você morar em prédio, tem uma tomada no corredor que você pode fazer uma gambiarra (risos). Ensino a quem dever, por exemplo. Não pode dever ninguém a menos 6 km da sua casa para dificultar a vida do cobrador que, se mora perto, cobra toda hora. Agora, se precisar pegar um carro, um ônibus, já vai dificultar e ele vai dar sossego. Dever parente, então, nem pensar. Só mãe (risos). Então, estou escrevendo assim, um é mais profundo, e o outro é uma brincadeira. Não estou atrás de estilo.
DM – Na dramaturgia, quais as oportunidades que considera mais marcantes?
Stepan – Eu brinco que o trabalho que mais gosto é o atual, porque o anterior eu já gastei o dinheiro do cachê (risos). Então, a gente espera que haja alguma coisa pela frente, porque trabalhar é tudo nesse mundo. Tive várias oportunidades boas na televisão e em novelas. E, mais recentemente, eu ficaria nesse meu trabalho do Chacrinha, que rendeu prêmios e eu tive oportunidade de fazer o trabalho no cinema, no teatro e na TV. Nas três áreas, fui bem sucedido. Foi uma dessas oportunidades raras, com um personagem espetacular como Chacrinha (por seu trabalho interpretando o personagem principal no longa de Andrucha Waddington, “Chacrinha: O Velho Guerreiro” (2018), recebeu o Grande Prêmio do Cinema Brasileiro na categoria de Melhor Ator em 2019).
DM – Como é viver tantos tipos diferentes e como se preparar para isso?
Stepan – Nenhum de nós deixa de ter dentro de si o desejo de ser várias pessoas diferentes. A profissão de ator te permite experimentar isso quase de maneira real. Eu sou grato a profissão de ator te obriga a se livrar de diversos tipos de preconceito, porque ao defender um personagem tem estar aberto a ver o lado humano dele, seja ele um bandido, um santo, um heroi, um nazista. O que for… Porque você tem que humanizar até o que é desumano. E eu gosto muito, porque é o único lugar que você morre e quando o diretor fala: cortou! e você ressuscita. (risos).
DM – Sonha em viver algum personagem?
Stepan – Não. O personagem que eu sonho em viver é o próximo. Eu não sei qual é, mas é o que vai me dar cachê para comprar: arroz, feijão, saúde e educação. Isso não tem jeito, é uma profissão como qualquer outra. E eu sou feliz nesse trabalho. Eu até comentei com um amigo esses dias, que se eu pudesse, eu vivia na profissão. Quando eu estou filmando não tem tempo ruim para mim. Posso esperar 12 horas de filmagem. Aquele universo que te permite se isolar da realidade. Um amigo disse uma vez que o diretor é louco e metido a Deus porque tudo já tá pronto, a história, o cenário e o diretor senta em uma máquina e começa a querer ser Deus, a criar um mundo com personagem, com nomes, com cenário… Mas esse mundo da ficção é muito agradável de viver. Se me perguntarem, eu sou ator, não tem jeito. Eu não nasci ator e acabei me transformando. E tem momentos que aparece um personagem que você deslancha, outros faz mais ou menos, outros faz pessimamente, mas você vai fazendo.
DM – Qual o preço da fama?
Stepan – No cartão dá para parcelar em muitas vezes (risos). O conceito de celebridade está mudando cada dia mais e nem está dando tempo de entender o que é. Então eu sou de uma geração em que você tinha que consolidar muito uma carreira para ser reconhecido como artista e levava um tempo. Minha relação com tudo isso, sempre foi ter na minha mão a fama. Se você ficar fazendo todo tipo de concessão para manter a fama, a qualquer momento alguém pode te tirar ela e te jogar no limbo.
DM – Qual a sua ligação com Goiás hoje? Torce para algum time por aqui?
Stepan – Eu sou Botafoguense em qualquer lugar do mundo. Aqui eu torcia para o Campinas que acabou, que juntou com o Vila Nova. Eu gostava do Atlético porque morava perto, mas a camisa do time não me traz boas lembranças porque é vermelha e preta igual ao do Flamengo (risos). Minha irmã mora aqui, estou aqui três dias e não fui visitar, mas aqui tenho meu grande amigo Vilmondes. Somos amigos desde a época do Cinco de Março. O Vilmondes é assim: quando eu fui embora, pedi para ele tomar conta da minha namorada e ele roubou minha namorada e depois quando fui embora do Cinco de Março, ele roubou o coração do Batista. A gente é muito parceiro. Me identificava com a alma artística dele e a paixão pela música e ele foi ser empresário. Passada uma temporada enorme, ele disse: agora eu vou dar vazão à minha veia artística e é um pintor extraordinário. Um dos quadros dele é a capa do livro “Garimpo de Almas”. Como eu disse no começo, muita coisa do passado passa ficar mais importante ao longo dos anos e, em Goiás, por exemplo, está toda a minha lembrança telúrica. Toda vez que entro em contato com a beleza da vida, da natureza, eu olho para o céu e vejo as estrelas, essas coisas me trazem imediatamente para Goiás. Minha ligação com Goiás é minha ligação com a vida, eu tive a sorte de nascer no melhor lugar do mundo que é Goiás e viver no segundo lugar melhor do mundo, o Rio de Janeiro, dois lugares tão diferentes, que se completam demais.
DM – Como foi parar na política?
Stepan – Sempre gostei de política, desde os movimentos estudantis. Deveria ter pessoas acima da média, porque vai organizar o sistema que pode mudar a sociedade. Acredito que é o caminho para diminuir as injustiças sociais, independente de capitalismo ou socialismo. Tinha que ser voltada para abraçar o maior número de pessoas possíveis e dar chances a elas para iniciarem a caminhada com os mesmos recursos. Dá um cantil de água para cada um e aí quem vai desperdiçar ou guardar para quando chegar no deserto, vai ser opção de cada um. Meu slogan (como vereador por dois mandatos pelo Rio de Janeiro) era “Política com arte”, do ponto de vista da arte, da cultura, mas também a arte da política. Mas isso foi mudando demais até o sentido do parlamento, que era um local para falar. Você não vê ninguém falando algo que presta, não se ouve discursos maravilhosos como de políticos extraordinariamente inteligentes que já tivemos. Hoje existe uma esperteza na política. Outra coisa é que de uma certa maneira nunca quis deixar de ser artista, mas no quarto mandato você vai se tornando político profissional. Foi mais um personagem que eu fiz (risos).
DM – Esse personagem saiu de cena?
Stepan – Agora já não tenho mais interesse, estou com 70 anos e vou cumprir esse resto de mandato escrevendo livros (risos).
DM – Qual a sua previsão política para o futuro próximo?
Stepan – Antigamente a gente analisava de forma geopolítica as regiões, porque tudo era mais independente. Agora, como se pode fazer previsões aqui, com esse mundo tão globalizado? Mais do que nunca, nós vamos depender do contexto mundial para saber como a gente pode caminhar. Pode vir uma crise econômica mundial e derrubar tudo. Se a China der errado, derruba tudo. Se, de repente, der uma vaca louca e não comprarem mais soja], o Brasil acaba. Por mais que a gente tenha um governo agora que pensa na justiça social, gostaria de ver algo mais pesado e radical nesse sentido da erradicação da desigualdade social e da pobreza e da gente cuidar da questão dos que estão nascendo. Acho que o mundo deveria se voltar para as crianças de 0 a 8 anos, As crianças estão próximas de Deus. A sociedade vai pagar um preço alto por maltratar seus anjinhos. Se não cuida dos anjinhos não vai construir santos e sim demônios, desses que a gente tem visto por aí. Temos que salvar essas crianças, não pode passar fome. Precisamos salvá-las.
DM – Como começou a sua história com o Retiro dos Artistas?
Stepan – É uma história em que volto ao Cinco de Março, onde vi que a gente precisa valorizar muito a experiência alheia. Trabalhei na redação quando eu tinha 13, 14 anos e conheci muita gente com experiência de vida engrandecedora que me passaram um ensinamento grandioso que não é valorizado. Eu cheguei no Rio muito cedo e eu digo sempre que tive duas famílias: a família de sangue e a artística , que no fundo, no fundo, eles acabaram de me criar. É um Grande Otelo da vida que foi meu irmão, grandes artistas como Rodolfo Arena, Dona Elza Gomes, que me passavam muito conhecimento pela oralidade. Acho que o jovem precisa saber que antes dele teve muita gente que fez muitas coisas para que tudo evoluísse. Peguei um tempo em que os artistas eram mal vistos, pais tinham vergonha dos filhos que decidiram ser artistas, era um desgosto… Hoje em dia não. Então, a maioria dos artistas rompiam com a família para seguir a arte. E como, historicamente, nem sempre isso dá certo financeiramente, muitas dessas pessoas caíram no abandono. As grandes companhias de teatro vinham de fora. Um grupo de artistas criou o Retiro dos Artistas que é centenário. Depois que estava fechando, me chamaram e eu aceitei. Já estou lá há 20 anos. E tenho muita gratidão a estes artistas.