Erasmo Carlos visita clássicos da Jovem Guarda em disco cheio de ternura
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 4 de fevereiro de 2022 às 21:58 | Atualizado há 4 meses
O futuro
pertence à Jovem Guarda, bicho! Sem abrir mão de riffs vigorosos, contrabaixo
marcando o tempo, som rolando no último volume da porra-louquice lírica, Erasmo
Carlos, oitenta anos exageradamente bem vividos, diz que leva a vida chorando
pelo mundo, talvez até tivesse algum desgosto profundo, então resolveu procurar
na memória, mas não se lembrou e não encontrara: “nasci para chorar.”
Assim
Erasmo abre o disco “O Futuro Pertence à… Jovem Guarda”, lançado nesta
sexta-feira, 4, sobre o qual o ídolo levou um lero publicado neste Diário da
Manhã no final de dezembro do ano passado. Famosa na voz do irmão-camarada
Roberto Carlos, o roqueiro carioca – considerado por muitos, inclusive este
escriba, o maior discípulo de Chuck Berry e Little Richards por estas terras
brasileiras – escolheu “Nasci Para Chorar” para abrir o disco e fortaleceu a
imagem de amante triste que tão bem lhe cai.
Sim,
Erasmo, a Jovem Guarda vai muito além de um programa de televisão. Sabemos que
você é um artista antenado às novidades do seu tempo. Ou melhor, para ser mais
preciso, um cara em sintonia com o presente, passado e futuro num tempo próprio,
mas sempre embalado pela sinfonia do rock e da poesia, às até de um sambinha,
já fumei um cigarro e meio, Narinha não veio, pois eu vou me embora, vou meu
Pasquim, lembra? Há seis décadas ele nos chama para o acompanhar, e nós
aceitamos.
É como se
em cada disco o cantor que revolucionou a cultura jovem na década de 1960
caminhasse mais um pouco em direção ao novo. Com “Erasmo Carlos e Os Tremendões”
(1970), após o fim da Jovem Guarda, o artista adota o visual de galã rústico do
movimento que encabeçou junto com Roberto e Wanderléa entre 1965 e 1968. Foi nesse
disco que começou a experimentar possibilidades musicais, criando canções
emblemáticas, como o samba-rock “Coqueiro Verde” e o folk-existencialista “Sentado
à Beira do Caminho”, não por acaso um clássico absoluto de sua discografia.
Em “Carlos,
Erasmo…” (1971), já rompido com as raízes da Jovem Guarda, o Tremendão apontou
os caminhos trilhados pela música brasileira nas próximas décadas. O repertório
é costurado letras em sintonia com o Brasil daquele tempo, um país fardado,
amordaçado e acovardado. Em “Gente Aberta”, música que faz parte do LP, ele e
Roberto já direcionavam sensível olhar para a falta de amor entre as pessoas: “eu
não quero mais conversa/ com quem não tem amor/ gente certa é gente aberta.”
Aclamado pelos fãs, “Carlos, Erasmo…” representa uma mudança de rumo na carreira do então ídolo da Jovem Guarda em pleno Brasil da ditadura, num disco influenciado pelo “tapa na pantera”, cuja referência é possível sacar em “Maria Joana”. As pessoas acham que naquele disco eu indiquei e sugeri caminhos pra música brasileira das próximas décadas. Não fiz com essa intenção. Fiz como se fosse um disco normal. Fico lisonjeado de considerarem esse disco.” Em 2022, a Universal vai relançá-lo em vinil. É do LP “É Preciso Dar um Tempo” e “De Noite na Cama”.
Em “O Futuro
Pertence à… jovem Guarda”, disco no qual Erasmo viaja até a década de 1960, a
imagem do cancioneiro cheio de ternura, com letras resignadas e melancólicas, conquista
nas cortas tocadas e orquestradas por Felipe Pacheco Ventura uma razão de ser.
À primeira vista simples, a alma do repertório reunido por Erasmo Carlos não se
perdeu no tempo, como seria comum aos artistas que vivem das glórias do
passado, e nos arranjos é possível perceber um som que remete ao indie-tristeza
contemporâneo.
Nada de
estranho, no entanto. Na segunda faixa, “Ritmo da Chuva”, os versos da chuva
ingrata que não vai parar encontram na harmonia um canal para canalizar o
eu-lírico que descreve o ritmo dos pingos cair no chão só para “me deixa relembrar”.
Porra, chuva, traga meu benzinho! E é tocado por essa tristeza que o dedilhado
no violão introduz “Alguém na Multidão”, letra que Erasmo cantou com emoção. Afinal,
há um alguém na solidão que vai me entregar seu amor e seu coração, não é?
Se o
estilo roqueiro está garantido em faixas como “Nasci Para Chorar” – canção
lançada por Roberto antes da Jovem Guarda -, o riff de guitarra, instrumento
bem tocado por Pedro Baby e Luiz Lopes, responsável por conduzir o tom rítmico
e melódico do disco, casa com versos carinhosos de “Tijolinho”: “você é meu
amorzinho, é o tijolinho que faltava na minha construção”. Para Erasmo, quem pratica
o ódio está morto faz tempo e não sabe. “O ódio é uma coisa terrível, é uma
praga”, me disse ele.
Concordo,
e não só: assino embaixo também. Às vezes, como em “A Volta, sucesso na voz de
Roberto Carlos, parece que estamos diante de um disco gravado pela banda The
Strokes. Precisamos reconhecer, contudo, que esse clima, semelhante a um chamego
que recebemos no cabelo da pessoa da qual gostamos e com a qual compartilhamos
as dores do mundo, combina com a faixa. O charme da composição está nos sintetizadores
que acompanham o vai e vem dos quadris da nossa companheira (o).
A metáfora sexual é apenas um subterfúgio numa vã tentativa de descrever a beleza por trás do disco. Pelo mesmo caminho auditivamente excitante, vai “Esqueça”, outra que foi lançada por Roberto. O único ponto do álbum que pode expressar certa fragilidade é “Devolva-me”, canção associada a Adriana Calcanhoto, porém nada grave demais, que compromete a qualidade. Fechando o disco, sacamos que a chame roqueira de Tremendão ainda está a mil por hora: guitarra, baixo, bateria… É apenas rock ´n´roll, mas eu gosto. Nós gostamos, Erasmo. Ouçam no streaming.