Enquanto dirige seu carro a caminho do trabalho, o zelador Hirayama escuta a voz perolizada de Nina Simone. A fita cassete, além de deixá-lo feliz, faz ressoar pelo ambiente a canção “I´m Feeling Good”, como se fosse um hino da plenitude simples: “Pássaros voando lá no alto, você sabe o que eu quero dizer. Sol no céu, você sabe o que eu quero dizer”.
O sorriso se forma no rosto zen de Hirayama, ainda em lágrimas, ao mesmo tempo em que Nina reafirma o novo amanhecer, o novo dia e a nova vida. “Rio correndo livre, você sabe como eu me sinto. Flores na árvore, você sabe como eu me sinto”, vocaliza a diva do gogó jazzy, fazendo seu canto estender-se por diferentes regiões de canto — do grave ao agudo.
Para os filósofos Bia Antunes e Luame Cerqueira, o cinema muitas vezes evita dar vida aos momentos que não se desdobram. “Wim Wenders, em seu ‘Dias Perfeitos’, opera uma reversão do que significa ‘perfeito’, levantando a questão sobre contentamento da existência morar em sua própria invisibilidade”, dissertam, na obra “A Tela que Pensa”.
Esse livro, recém-lançado por Bia e Luame pela Tipografia Musical, coloca Hirayama como trabalhador pouco respeitado pela sociedade. Seu emprego, afinal, consiste em limpar banheiros públicos em Tóquio. Longe do status quo, sobra-lhe a tranquilidade da insignificância e, por isso, terá durante a labuta “presença absoluta na própria vida”.
Observamos que o lema desse personagem parece ser perfeccionismo no labor, sem deixar marcas. “Talvez seja o lema da sua própria alma”, salientam os filósofos, em reflexão sobre esse cotidiano modesto que impede Hirayama de ter maiores ambições. Em nada, contudo, lhe afeta o digno mas pouco apreciado ofício de assear dejetos expelidos pelas pessoas.
Apaixonado por fotografia, literatura e música, o zelador se satisfaz com banho diário na sauna de que gosta, bebida no bar favorito, andar de bicicleta pela cidade e pegar livros no sebo. “Suas energias não são dissipadas em falsos movimentos”, notam Bia e Luame, retificando que há na pacata figura esforços para “neutralizar estímulos desnecessários”.
Há cena elucidativa, em “Dias Perfeitos”, disponível no Mubi, da sapiência taoísta desse homem desprovido daquela estranha ambição material: uma mãe assustada atrás do filho. Hirayama pega na mão da criança perdida, mas a mulher tampouco o procura pelo olhar. Mesmo assim, de acordo com Bia e Luame, ele livra-se de qualquer ressentimento.
“A cada novo dia, Hirayama olha para o céu com um leve sorriso, mesmo que não haja sol, como se sempre celebrasse um renascimento ao acordar ou, quiçá, o próprio esplendor da existência”, pinçam os filósofos. “Molha suas plantas, recolhe o livro lido na noite anterior, faz sua higiene, se veste com uniforme apropriado, pega uma lata de café e entra no carro.”
Nas ruas largas de Tóquio, com as mãos repousadas no volante e compenetrado no tráfego matutino, Hirayama ouve suas fitas cassetes: The Animals, Velvet Underground, Patti Smith, Rolling Stones, Janis Joplin. Assim que chega o horário de almoço, senta-se no parque e se realiza fotografando a natureza, cujas imagens revelará no fim de semana seguinte.
Bia e Luame, cujo livro perpassa também filmografia de Fellini, Tarantino e Antonioni, reparam que o personagem sempre se faz presente no momento. Tal qual um sábio estoico, compreende o valor de cada instante, sem desejar coisas que lhe fogem do controle. Jamais o veremos conversando com as pessoas porque, ora pois, assim funciona a etiqueta social.
Normas sociais
Quase não fala, o Hirayama. E, cá pra nós, por que o faria? “Como se naturalmente soubesse que o ministério da vida se esquiva às normas sociais, não se adapta às generalidades linguísticas. É benevolente e generoso com aqueles que cruzam seu caminho, desde que não atrapalhem sua ritualização da existência”, descrevem os filósofos, em “A Tela que Pensa”.
“O personagem de Wim Wenders é revolucionário no sentido que, sem a menor pretensão de originalidade, produção ou conhecimento, é capaz de perfeccionar a arte de viver. Não é que as situações cotidianas não lhe digam respeito”, refletem os ensaístas, tendo em vista exigências impostas pelo neoliberalismo e seu anseio pela novidade descartável.
Seria tentador, na visão dos filósofos, considerarmos Hirayama sujeito frustrado, do tipo que terminará seus dias a pensar nas oportunidades perdidas, “como se a vida dependesse desse desenrolar, dessa maneira de completar o que antes era apenas insinuação”. Quando recebe a inesperada visita de sua sobrinha, todavia, coloca-a em seu cotidiano simples.
Surge a mãe dessa adolescente, irmã de Hirayama: rica, ambiciosa, indiferente. Ao contrário do irmão, passa seus dias confinada aos status da sociedade. Bia Antunes e Luame Cerqueira ainda relacionam “Dias Perfeitos” com “Parterson”, produção lançada em 2016 pelo cineasta Jim Jarmusch. “A Tela que Pensa”, por tudo isso, é um bom presente natalino.
A TELA QUE PENSA
Bia Antunes
Luame Cerqueira
R$ 79,90
260 Páginas
Tipografia Musical