Madrugada chegando. Leio “Meninos em Luta”, de Marcelo Rubens Paiva e Clemente Tadeu Nascimento. Se você tem vinte anos, diz Marcelo, tem fúria na mente. Se tem mais, ele continua, tem que se livrar dela. Dica: lute. Eu luto, tu lutas, nós lutamos. Assim também se conjuga o verbo “criar”.
Nos anos 1960, os jovens jogaram pedras contra milicos. Ditadura brava, atos institucionais, ditadura fardada, AI-5. Havia quem apostasse que bastava arremessar uns coquetéis molotov nos gorilas pra repressão se escafeder. Parte dessa galera pegou em armas. Deu ruim. Nos anos 1980, os novos jovens viram que esse negócio de fuzil FAL era papo errado.
Desprezavam a fama, o consumo, as mazelas do capitalismo. É, houve um tempo em que se zoava uma certa banda daquela língua vermelhona na porta do avião. Foda mesmo era Clash, com seu discaço triplo que celebrava um movimento terceiro-mundista da América Central, o sandinista. Os caras ainda exigiram preço lá embaixo porque queriam que os proletários os ouvissem. O rock, verdadeiro rock, não tem nada a ver com delírios comerciais.
Em 28 de agosto de 1982, num palco montado no Salão Beta da PUC, o escritor Marcelo Rubens Paiva observou o piso de madeira reverberando enquanto todos ali pulavam. A bateria, tum-tá-tum, anunciou o “Pânico em SP”, em seguida o baixo martelou solo de quatro notas, então a guitarra se enfureceu: “As sirenes tocaram, as rádios avisaram, que era para correr. As pessoas assustadas, mal informadas. Puseram a fugir… sem saber o porquê.”
Um ano antes, o Inocentes se formou em São Paulo. Explodia o movimento punk brasileiro. No ano seguinte, a banda foi convidada, ao lado de Cólera e Olho Seco, a fazer parte da coletânea Grito Suburbano, o primeiro registro discográfico que se conhece desse período. Na revista “Somtrês”, a jornalista Ana Maria Bahiana afirmava que “a maioria das letras é excepcionalmente boas, algumas são brilhantes e de todo modo muito mais plugadas no nosso tempo e lugar que as baboseiras romântico-ecológicas que transitam por nosso rádio”.
Com Clemente Nascimento à frente, as performances se mostravam incendiárias, seja no palco ou na imprensa. “Estamos aqui para revolucionar a música popular brasileira, para pintar de negro a Asa Branca, atrasar o Trem das Onze, pisar sobre as flores de Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer”, escreveu o artista no “Estadão”, em 1982.
“Estamos aqui para revolucionar a música popular brasileira, para pintar de negro a Asa Branca, atrasar o Trem das Onze, pisar sobre as flores de Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer” Clemente Nascimento, cantor punk
O inocente chamou atenção da equipe que fazia o documentário “Garotos do Subúrbio”, dirigido por Fernando Meirelles. Outro leitor ilustre se interessou pelo ímpeto rebelde de Clemente: Antonio Bivar, que escrevia um volume da coleção “Primeiros Passos”, editada pela Brasiliense, responsável por lançar na época duas obras essenciais à literatura jovem, os romances “Tanto Faz”, de Reinaldo Moraes, e “Feliz Ano Velho”, de Marcelo Rubens Paiva.
“O Que é Punk”, o livro de Bivar, documentou essa efervescência inicial do punk brasileiro. Segue referência fundamental pra quem quer se iniciar nessa forma de arte. Foi importante também a coletânea “O Começo do Fim do Mundo”, gravada no Sesc Pompeia, em 1982.
Em 1986, o Inocentes assinou contrato com a gravadora Warner para lançar o primeiro disco. “Pânico em SP”, que chegou às lojas naquele mesmo ano, revela a banda explorando o punk e a insere dentre os grupos mais importantes do rock nacional dos anos 1980. São mais de 15 álbuns editados. Pela Monstro Discos, em 2007, saiu um DVD Ao Vivo com os clássicos “Pânico em SP”, “Pátria Amada”, “Ele Disse Não”, “Cala a Boca”, “Não Acordem a Cidade”.
Ao longo desses anos, a banda se manteve fiel aos seus princípios artísticos. E continuou na estrada. O Inocentes é formado, atualmente, por Anselmo Monstro (baixo), Clemente Nascimento (voz e guitarra), Nonô (bateria) e Ronaldo Passos (guitarra). Eles se apresentam neste sábado, 7, no Cidade Rock, a partir das 23h, num rolê que terá Chef Wong´s, Bizarrones, Ímpeto e Señores, além de discotecagem do jornalista Pablo Kossa.
Na entrevista que se segue, Clemente Tadeu Nascimento fala ao Diário da Manhã sobre pré-punk, as bandas que lhe marcaram e os conselhos que dá aos jovens. “Rebele-se”, diz, rindo. Opina ainda a respeito da massificação musical. Leia a íntegra da conversa:
Diário da Manhã - Como New York Dolls, Stooges e MC5 chegaram aos seus ouvidos?
Clemente - Conheci o Douglas Viscaíno na escola em 1976 com quem fundei o Restos de Nada anos depois e, com ele, a turma da Vila Carolina. Eles me apresentaram essas bandas, pois a gente não gostava do rock mainstream da época. Achávamos que ele não representava os garotos e garotas que estavam nas ruas, feito para as paradas de sucesso. Já essas bandas se tornaram nossas preferidas. Eram pouco conhecidas e falavam o que queríamos ouvir. O punk ainda não tinha chegado por aqui. Nossa turma colecionava discos raros. Ouvia coisas como Blue Cheer, Pinky Fairies e Lucifer’s Friend. Essas bandas faziam parte do nosso cotidiano.
Quando começamos a ouvir falar de punk, a primeira coisa que mostrou uma sinergia com a gente foi o fato de eles serem influenciados pelas bandas que a gente curtia, que o rock estava muito chato, precisava de energia e falar a linguagem das ruas" Clemente Nascimento, cantor punk
DM - De que forma esse som pré-punk te abriu as portas para Sex Pistols e Dead Boys?
Clemente - Quando começamos a ouvir falar de punk, a primeira coisa que mostrou uma sinergia com a gente foi o fato de eles serem influenciados pelas bandas que a gente curtia, que o rock estava muito chato, precisava de energia e falar a linguagem das ruas. O visual do Ramones era o visual da minha turma: jaquetas de couro preta, jeans apertados, tênis e camiseta. A identificação foi imediata, logo tínhamos uma coleção enorme de discos punks.
DM - Por que estrelismo da música era insignificante pra periferia no início dos anos 80?
Clemente - O estrelismo da MPB, do rock, da música, não falava sobre o que estava sentindo um jovem da periferia. Quando começamos a tocar foi por pura necessidade de nos expressar. Não estávamos preocupados se iríamos gravar, tocar na rádio, nada disso. Era tocar para colocar para fora o que sentíamos.
DM - Ainda acha que os astros da MPB estão cada vez mais cansados, conforme escreveu no texto “Manifesto Punk: Fora com o Mofo da MPB! Fim da ideia da falsa liberdade!”?
Clemente - Eu escrevi isso há 42 anos. Acho que deu bastante tempo para descansar (risos). Tem que colocar o texto no contexto de época. Estávamos de saco cheio da música mainstream. Podia ser MPB, rock, pop. No manifesto, o alvo acabou sendo a MPB. Nem lembro mais o porquê (risos).
DM - Como foi narrar as histórias do punk brasileiro com Marcelo Rubens Paiva?
Clemente - Na verdade, narramos nossas memórias, que se fundem ou confundem com a do punk brasileiro. Foi uma experiência única, pois, a princípio, era para o Marcelo escrever a minha biografia. Mas, como nossas histórias estavam tão intercaladas, acabamos juntando tudo e, quando mostrei alguns textos meus, acabou virando um livro a quatro mãos. Foi — acima de tudo — divertido conviver com Marcelo todo esse período.
DM - Com a clareza da distância histórica, como avalia hoje em dia o punk na condição de aglutinador da juventude insatisfeita no fim da ditadura?
Clemente - O punk foi a mola propulsora que desencadeou no rock da década de 80. Aquele momento precisava de uma trilha sonora. O punk se encaixou perfeitamente. Foi uma das poucas vezes na história em que a vanguarda estava na periferia — e não na classe média.
DM - O que te chama atenção hoje no underground em termos musicais e estéticos?
Clemente - Tem tanta banda legal dos mais variados estilos. Goiânia é um celeiro de bandas legais: Mechanics, Señores. Mas tem também Molho Negro, Anônimos Anônimos, Der Baum, Cigarras, Jonnata Doll e os Garotos Solventes. É muita banda boa, novas bandas punks, como Punho de Mahin e Refugiadas, e até nem tão novas, como o Excluídos e Devotos, que lançaram discos ótimos. A lista é muito grande. Bandas legais têm. O que não tem mais é espaço na mídia para essas bandas chegarem a mais gente.
DM - Por que o punk é importante como meio para expressar a tão necessária rebeldia?
Clemente - Porque o punk mantém vivo essa rebeldia. Quando todos estiverem conformados com tudo que acontece, o mundo para, a Terra não gira, a função do punk é manter viva essa chama, mas não existe um punk só, ele é plural, nunca vi tanta banda punk nova boa, como agora, são várias cenas punks diferentes e até sonoramente diferentes entre si.
DM - O que tem a dizer pro jovem que quer se rebelar contra a massificação da música?
Clemente - Rebele-se (risos). Geralmente, a música massificada é ruim, com raras exceções. Estamos vivendo uma época realmente triste para a música mainstream. Nunca foi tão ruim, em termos artísticos e estéticos. Se você quer fazer música de verdade, tem que se rebelar
DM - Como tem sido se apresentar nesses anos todos junto da brasiliense Plebe Rude?
Clemente - Tem sido muito legal. Este ano fez 20 anos que estou na Plebe. Estou há mais tempo do que durou a formação original. Gravei vários discos, fiz shows antológicos, tem gente que acha que estou na Plebe desde sempre (risos). Conheci os caras em 1983 no primeiro show que fizeram em São Paulo. Banda completamente desconhecida. Nem tinha gravado ainda e ficamos amigos. Inocentes e Plebe viraram bandas irmãs. Sempre fui fã deles e, agora, posso tocar junto com eles. Isso é bem bacana e compensador. Vamos comemorar os 40 anos do disco “Concreto Já Rachou”. Espero passar por Goiânia.