Cultura

“Foi um disco que nos colocou no mundo”, afirma Lenine

Marcus Vinícius Beck

Publicado em 26 de maio de 2023 às 23:55 | Atualizado há 2 anos

Lenine, trilha sonora do Brasil, música nossa. Olho de peixe, falange canibal. Le-ni-ne: cronista dos ritmos, artesão dos discos, o cara que se juntou à banda Pequi. Le.ni.ne.


Sua voz repousa na região do barítono, sua entonação para interpretar as canções que escreveu reside na paciência, seu jeito pernambucano do Recife o torna um leão do Nordeste. Tudo isso é desenhado pelas linhas melódicas assinadas por Carlos Malta, músico capaz de manipular o vento. O DVD, gravado no Teatro Sesc em 2018, apresenta arranjos ousados. “Sonho coletivo”, resume o falecido maestro Jarbas Cavendish, no encarte da obra.


O convite para Lenine participar do projeto partiu de Jarbas. Com sotaque brasileiro, Malta criou os arranjos do terceiro projeto da série Convidados Especiais, a qual já tinha recebido nomes importantes para a música popular brasileira, como João Bosco e Nelson Faria. “Os arranjos para as canções de Lenine nos transportam para um mundo mágico musical onde melodias e ritmos se combinam em busca de uma linguagem inovadora”, pontua Jarbas.


Ao falar com a reportagem, Oswaldo Lenine Macedo Pimentel sorri. “A gente se vê e eu tenho impressão de estar falando com alguém, não com alguma coisa”, diz, quando o repórter liga a câmera do notebook na entrevista por Google Meet. Ele está com a mão direita recostada no rosto. Veste camiseta preta. Pulseiras da mesma cor no pulso. Brinco na orelha esquerda. Para o artista, se tem música, está tudo bem. Como seria diferente?


Após enfrentar a barra pesada da depressão, durante o tempo cinza da pandemia, Lenine comemora agora os 30 anos do disco “Olho de Peixe”, álbum de atmosfera acústica, letras marítimas e violões que abraçam a tradição de João Gilberto, Baden Powell, Jorge Ben, Gilberto Gil e João Bosco. O percussionista Marcos Suzano ajudou a dar requinte instrumental ao trabalho, fazendo os arranjos terem o mesmo peso das letras. 


Para celebrar a efeméride, entra às plataformas de streaming, pela primeira vez, o marcante trabalho lançado em 1993. Também haverá uma edição limitada dele em vinil que irá ganhar às lojas por meio do selo Noize Record Club, responsável por contribuir com a cultura elepê no Brasil. Os bolachões ficarão disponíveis para compra no próximo dia 9. As entregas acontecerão a partir de setembro. Vale a pena. Trata-se de coisa fina em matéria musical. 


Streaming


Lenine diz que, como o disco de 93 nunca tinha frequentado o streaming, pareceu-lhe uma boa ideia levá-lo até Spotify ou Deezer. “‘Olho de Peixe’ foi um trabalho que, na verdade, foi feito e lançado num momento em que indústria tinha migrado para o CD, mas foi totalmente produzido no analógico: mixagem, gravação. Todo o processo foi em fita mesmo, de duas polegadas. Da forma como era feito”, recorda-se o artista ao Diário da Manhã.


Afora a anedota tecnológica, na qual se fez o álbum e a partir da qual se entende o passado da produção discográfica brasileira, “Olho de Peixe” é obra-chave na carreira de Lenine”. Segundo o percussionista Marcos Suzano, cada vez mais, é possível enxergar influência do disco na música produzida nos dias atuais. “É impressionante a quantidade de músicos da nova geração, de 20 e poucos, de 30, que tem o ‘Olho de Peixe’ como divisor de águas.”


Com esse disco, Lenine se formatou como cantor-autor, isto é, que canta suas composições. “Uma autoralidade naquilo que canta e toca”, atesta o músico, cujo som experimental é encontrado nos próximos três discos – “O Dia em que Faremos Contato” (1997), “Na Pressão” (1999) e “Falange Canibal” (2002). Se o pernambucano já demonstrava desde os anos 80 habilidade para misturar gêneros (frevo, maracatu, caboclinho e ciranda) e cobri-los com o verniz da linguagem pop, o marco-zero do artista mesmo é o celebrado disco de 93. 


“Tem o fato de ser um disco que corrobora e acrescenta na evolução não só da percussão brasileira, como no violão brasileiro. Foi um disco que nos colocou, eu e Suzano, no mundo. É identificado como uma música contemporânea, étnica, quer dizer, uma mistura de coisas. Isso também nos possibilitou rodar o mundo algumas vezes durante dois ou três anos”, rememora o artista, que recebe influência de Ângela Maria, Jackson do Pandeiro, Chopin, Bach, Dorival Caymmi, Clube da Esquina, Led Zeppelin, Frank Zappa e The Police.


Até então, em parceria com o músico Lula Queiroga, tinha feito o disco “Baque Solto” – nesse álbum, por exemplo, já é possível observar a pesquisa musical que, nos trabalhos seguintes, seria determinante para a estética sonora leniniana. Mas o elepê, em termos mercadológicos, não deslanchou: vendeu pouco, o grande público não o conheceu e o estouro teve de esperar mais alguns anos. Um ouvinte atento terá condições de perceber a tentativa do artista de tocar violão brasileiro, com a assinatura rítmica e a marca de seu cancioneiro impressa ali.  


Cena alternativa


Mesmo não tendo acontecido “nada”, foi se tornando conhecido, pouco a pouco, na cena alternativa carioca. Compunha sambas, a vida lhe sorria amarelo, a segurança se encontrava na família. Quem o ajudou a suportar a falta de grana até o reconhecimento aparecer foi Anna Barroso, esposa, mãe e madrasta dos filhos João Cavalcanti, Bruno Giorgi e Bernardo Pimentel. A essa altura, já mais no estúdio do que em cima dos palcos, o bossa novista Roberto Menescal impressionara-se com Lenine e Lula ao vê-los no Teatro Ipanema, no Rio. 


“A gente tinha que montar o teatro, fazer show, deixar tudo pronto para o espetáculo no dia seguinte. A gente tocava sexta, sábado e domingo nessas condições. Menescal, então diretor da Polygram, viu isso e levou ao estúdio, para a gente gravar. Naquele momento, as gravadoras abatiam o imposto, ICM, numa relação proporcional de número e títulos lançados. Isso fazia com que ela fizesse, mensalmente, trinta elepês, mas só lançasse, realmente, três ou quatro. Não foi só eu que tive isso, foi uma geração”, recorda-se.


O repórter pergunta, antes de encerrar a entrevista, quais recordações Lenine possui de Goiânia, além de ter gravado DVD na cidade com a Banda Pequi. “Acabo conhecendo as coisas mais pelo estômago, que tem tempo de se alimentar durante o prazo que vai de chegar, passar o som, fazer o som, dormir e voltar. Ao longo dos anos, você descobre os amigos, mas também os lugares em que você comeu, a comida do lugar, então vou fazendo um tipo de resenha. Isso fica como uma memória”, conta. Com Goiânia, garante, não é diferente. 


Olho de Peixe faixa a faixa


Acredite ou Não (Lenine/Bráulio Tavares)


O Último Pôr do Sol (Lenine/Lula Queiroga)


Miragem do Porto (Lenine/Bráulio Tavares)


Olho de Peixe (Lenine)


Escrúpulo (Lenine/Lula Queiroga)


O Que é Bonito (Lenine/Bráulio Tavares)


Caribenha Nação/Tuaregue e Nagô (Lenine/Bráulio Tavares)


Lá e Lô (Lenine)


Leão do Norte (Lenine/Paulo César Pinheiro)


Gandaia das Ondas/Pedra e Areia (Lenine/Dudu Falcão)


Mais Além (Lenine/Bráulio Tavares/Lula Queiroga/Ivan Santos)

Tags

Leia também

Siga o Diário da Manhã no Google Notícias e fique sempre por dentro

edição
do dia

Impresso do dia

últimas
notícias