Frejat acentua sotaque bluesy de clássicos da música popular brasileira
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 24 de fevereiro de 2024 às 16:58 | Atualizado há 4 meses
Olha ele aqui. Roberto Frejat chegou. Ele avisa que o show a ser apresentado passeia pelo blues brasileiro. Nove músicos o acompanham no estúdio Floresta, Rio de Janeiro, num ensaio orgânico. Meus pés começam a se mover, gingo pra lá e retorno pra cá, tô maluco da ideia! Uma baqueta vassourinha escorre pela caixa da bateria comandada por Marcelinho da Costa e interage com os sussurros expressados pelo baixo de Bruno Migliari: “fui internado, ontem/ na cabine 103/ do hospício do Engenho de Dentro/ Só comigo, tinham dez”.
Sejam bem-vindos ao “Frejat em Blues”, novo projeto do ex-vocalista, compositor e guitarrista do Barão Vermelho. Faz uns bons anos que sonhávamos com a chance de escutá-lo acentuando o sotaque bluesy dos clássicos brasileiros “Que Loucura” e “Pérola Negra”, ambos grudados em nossos ouvidos por algo grandiosamente poderoso: o vozeirão de Luiz Melodia. Melodia é contemporâneo daquela linhagem brasileiríssima iniciada com os versos do poeta Waly Salomão e com o violão de Jards Macalé, nos anos 70.
Há quem diga que o blues brasileiro começou aí. Frejat, inclusive. “Eu talvez seja a terceira geração desses autores de blues em português”, situa-se o músico, em depoimento concedido para o making of dos ensaios, dirigido por Rique Schnabl, Kélita Myra e Alice Pellegatti. Ele listou 38 canções num primeiro levantamento. Deu-se conta então de que era preciso usar a borracha, estabelecendo critérios para que pudesse selecionar o repertório final. Só gente boa: Melodia e Salomão, Macalé e Jorge Ben, Rita Lee e Alceu Valença.
Ligado ao estilo e apreciador dos britânicos Bluesbreaks, com os virtuosos da seis cordas John Mayall e Eric Clapton, Frejat acredita que o blues se aclimatou à língua de Fernando Pessoa a partir de Macalé e Waly. “Depois tem Melodia com a Rô Rô. Já um pouco mais à frente vem eu e Cazuza, dando sequência a essa geração de compositores”, contextualiza o guitarrista carioca. “Dentro do repertório, existem outras pessoas que, ocasionalmente, compuseram algo que tem o blues presente – e eu tô dando uma destacada nesse sotaque.”
Como Caetano Veloso, por exemplo. Ou Gilberto Gil. E até o próprio Djavan. Frejat garante que eles não são compositores que têm o blues presente nas suas obras, mas em algum momento blueseiam. “Peguei essas canções pra mostrar que há o blues dentro do repertório da música brasileira. Chamei meu filho Rafael e Maurício Almeida (guitarra). A gente já tinha feito todo o trabalho de direção musical do trio, do Frejat Trio (EP está no Spotify). Eles me ajudaram nesse projeto a fazer pré-produção, a achar o formato e os arranjos”, relata.
Formação
Sabemos que o rock’n roll é um elemento importante à formação artística de Roberto Frejat, pois integrou o Barão Vermelho por 35 anos. Pegar o caminho que o levasse ao blues foi natural. Ao pesquisar sobre rock, obteve a informação de que o estilo acelerado tocado por Chuck Berry e Little Richard descendia daquela “música do diabo” feita pelo violonista Robert Johnson nos bares de Mississippi, na década de 30. Em seguida, curtiu o som dos lendários Muddy Waters, John Lee Hooker, BB King, Albert King e Howlin´Wolf.
Frejat revela que os blues tocados nos discos de rock passaram a ser suas músicas favoritas. É o caso dos Rolling Stones, banda da qual é admirador, que subiu ao palco pela primeira vez no ano em que ele nascera: 1962. “Percebi que tinha uma sintonia com esse tipo de linguagem que era muito forte: comecei a me dedicar, comecei a entender, a conhecer os intérpretes, os compositores, os músicos, toda a gente que estava ligada a essa linguagem”, lembra, no making of dos ensaios para o projeto “Frejat em Blues”, disponível no Youtube.
Diretores musicais: Maurício Almeida (guitarra), Roberto Frejat (guitarra e voz) e Rafael Frejat (piano e guitarra). Foto: Leo Aversa/ Divulgação
Claro que sua antiga banda, o Barão Vermelho, se faria representada. Excelentes escolhas, aliás: “Quem me Olha Só”, “Não Amo Ninguém”, “Down em Mim” e “Bilhetinho Azul”. Parceria entre Frejat e Arnaldo Antunes, a primeira canção foi gravada no disco “Rock ‘n Geral” (Warner), que saiu em 1987, com um charmoso arranjo de metais bolado pelo músico Serginho Trombone. Merece elogios também o órgão Hammond, cujas ideias de Maurício Barros contrariavam o que pensava para o Barão o experiente e ex-mutante Liminha.
Fruto de laços artísticos que conectaram os dois lados da Via Dutra, “Quem me Olha Só” demonstra todo o lirismo do titã em vez do seu habitual concretismo. Mais Jorge Salomão, menos Augusto de Campos, se é que você me entende. Valeu Maurício ter corrido o risco de peitar Liminha – dado de ombros àquela ideia minimalista de piano e voz dele – para ajudar a fabricar uma das maiores pérolas já criadas pelo Barão, com seção de sopro que, além de Serginho, tinha ainda o saxofonista Zé Carlos Bigorna e o trompetista Bidinho.
A versão do show “Frejat em Blues” preserva os arranjos de metais. Na estreia do espetáculo, ocorrida na Marina da Glória, Rio de Janeiro, em outubro do ano passado, Frejat explicou as razões que o levaram a tocar “Quem Me Olha Só” quase da mesma forma como foi gravada. “Esse arranjo que a gente vai tocar agora foi o primeiro que o Serginho Trombone fez trabalhando com o Barão Vermelho”, relata o músico, que mudou poucas notas no solo de guitarra. Um solo que, sem dúvida, aparece dentre os melhores na discografia do Barão.
Além de Zé Carlos Bigorna (sax tenor e barítono), músico que participara das gravações em 87, a seção de sopros conta ainda com Diogo Gomes (arranjos de metais, trompete e flugelhorn) e Marlon Sette (arranjos de metais e trombone). Outra música do Barão que está no espetáculo é “Não Amo Ninguém” (“Maior Abandonado”), escrita por Frejat, Cazuza e Ezequiel Neves, com uma sequência de acordes em sétima que tornam o riff um dos clássicos do blues brasileiro: “mal acordei, já dei de cara/ com a tua cara no porta-retrato”.
Frejat, guitarrista: frases melódicas curtas e pulso vibrante. Marcus Vinícius Beck
Frejat usa uma Telecaster preta ao estilo Keith Richards, que adotou modelo semelhante, durante a turnê de 81 dos Rolling Stones. Assim como o stone, sempre privilegiou o ritmo e o pulso, num constante diálogo com baixo e bateria. Quando sola, contudo, opta por frases melódicas curtas e sedutoras – caso de “Não Amo Ninguém”, por exemplo. Sua guitarra cola em nossos ouvidos, tornando-se imprescindível para os maiores hits do Barão, como “Bete Balanço” e “Maior Abandonado”, ou de sua carreira solo, “Eu Preciso te Tirar do Sério”.
Parceria
De sua lavra com Cazuza, o músico levou para “Frejat em Blues” a canção “Blues da Piedade”, gravada no disco “Ideologia”, de 88. O show passa ainda por “Down em Mim”, escrita e musicada pelo cantor, num evidente diálogo com “Down on Me”, lançada por Janis Joplin no álbum “Big Brother & the Holding Company”, de 1967. Percebe-se uma guitarra madura para alguém que não tinha nem 20 anos, idade de Frejat quando entrou no estúdio com o Barão para fazer o primeiro disco da banda, “Barão Vermelho”, no ano de 81.
O artista ainda interpreta “A Mim e a Mais Ninguém”, canção de Angela Rô Rô e Sérgio Bandeyra, do elepê lançado pela artista em 79. Mas a figura importante no show, garante Frejat, é mesmo Luiz Melodia. “Acho que talvez seja a personificação do que eu considero o blues brasileiro. Tanto que ele tem umas quatro músicas dentro do repertório, quatro ou cinco”, conta o músico, antes de interpretar – com uma imponente Gibson ES 335 vermelha, que era de Melodia – as canções “Hoje” e “Amanhã Não Saio de Casa”.
Nas últimas semanas, Frejat tem disponibilizado para os fãs em seu canal pelo Youtube vídeos com as versões dessas músicas. “Como 2 e 2”, de Caetano Veloso – aliás, é impossível escutá-la e não se emocionar pela delicadeza do Fender Rhodes tocado por Rafael Frejat, seu filho -, é uma delas. Tão bonita quanto, “Esquina”, conhecida na voz de Djavan, demonstra uma banda entrosada, com pulso murmurante na guitarra e espertos comentários de metais. E, por fim, “Pérola Negra” e “Que Loucura”: “estou maluco da ideia”. Que venha a Goiânia!