Gilberto Braga apresentou incongruências do Brasil no horário nobre da TV
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 29 de outubro de 2021 às 13:04 | Atualizado há 4 meses
Gilberto
Braga afrontou, polemizou e convidou a sociedade brasileira para sentar ao sofá
durante o horário nobre e refletir sobre pautas tabus, como união homoafetiva,
liberação da maconha – é dele a primeira cena em que se fuma um baseado em
novelas – e desigualdade social. Erudito, formado em Letras pela PUC-RJ, fluente
em francês e cinéfilo, começou a carreira nas páginas do jornal O Globo, onde
batucava críticas de teatro. Até que, ciente de ter a mão sob medida para a
ficção, enveredou para o roteiro.
Escolha, como se sabe, assertiva: Braga conseguiu a audácia de fazer com que o público ficasse preso em frente à telinha para acompanhar os desdobramentos de suas tramas, quem matou quem, impossível não se lembrar de Odete Roitman, e com isso deixou lições para novos profissionais que escreviam folhetins. Sim, a partir das tramas que criava estimulava o dialogo e evitava preconceitos, padrões comportamentais, sexuais e afetivos. Existe antes e depois dele. Seu currículo fala por si só.
O ano
era 1988 e o Brasil parava para pensar e tentar descobrir quem seria o assassino
da ban ban ban Odete, em “Vale Tudo”, personagem emblemática vivida pela atriz
Beatriz Segall. Não havia quem não tivesse um palpite, até mesmo bolões eram
organizados para quando enfim o mistério fosse desfeito. Braga, morto na
terça-feira, 26, em decorrência de infecção generalizada após lutar contra
Alzheimer, era brilhante.
Em
1976, o dramaturgo conheceu o sucesso, quando escreveu “A Escrava Isaura”, que
se tornaria uma das marcas da Globo, sendo vendida para fora, como o foi também
“Vale Tudo”. Difícil acompanhar a triste história da escrava branca Isaura
(Lucélia Santos), que pertence ao pior dos vilões, Leôncio (Rubens de Falco).
Gilberto Braga fez o país conhecer essa trama e sofrer junto com a
protagonista, além de novamente criar um personagem com todos os requisitos
para ser odiado pelo Brasil inteiro.
Dois anos depois, seria a vez de ocupar o horário nobre da Globo com “Dancin’ Days”, um de seus maiores sucessos, com Sônia Braga, uau!, vivendo a ex-presidiária Júlia Matos, que retorna à liberdade pronta para arrebentar na pista de dança e travar embate com o passado, num duelo feroz com a irmã Yolanda Pratini (Joana Fomm). Braga colocou aí a luta de uma mulher pelo direito de ter uma vida normal e pelo reconhecimento e amor da filha, Marisa, que aqui foi interpretada por Gloria Pires.
Aqui e ali, entre uma novela e outra, o roteirista assinou duas minisséries que são lembradas com carinho pelo público. Foi com “Anos Dourados”, em 1986, que ele fez sua incursão no gênero mais compacto. Audacioso, o enredo mostrava os preconceitos da sociedade carioca, ali despontou Malu Mader. Ela vivia Lurdinha, que se apaixona por Marcos (Felipe Camargo). De família tradicional, interessou-se por um estudante de escola militar, filho de pais separados, abrindo brecha para temas como virgindade, sexo e traição. E com uma trilha sonora composta pelo bossanovista Tom Jobim.
Se em
“Anos Dourados” o que estava em pauta era os conservadores anos 1950, em “Anos
Rebeldes”, de 1992, o público acompanhou as turbulências de uma geração
massacrada pela repressão imposta durante os anos de ditadura civil-militar. Braga
pinçou, com talento, criatividade e competência, os sentimentos e sensações de
uma geração que havia ingressado no movimento estudantil, porém era
sumariamente silenciada – a título de curiosidade, os caras-pintadas foram às
ruas protestar contra o então presidente Fernando Collor de Mello enquanto a
série estava no ar.
Braga parou por aí? Não, não. Ele resolveu ir além e presenteou o público com mais novelas que demonstram que seu poder criativo continuava a mil por hora. “Celebridade”, de 2003, é dessa safra. Na trama, evidenciou a disputa ferrenha entre duas mulheres, algo entre o bem e o mal, mas ambas cativantes, como não gostar de Claudia Abreu (Laura da Costa) e Malu Mader (Maria Clara Diniz)?
A cena
em que as duas se engalfinham, entre tabefes, mãos nos rostos, descabeladas,
entrou para a história da teledramaturgia. Há quem sustente a tese – ok, um
pouco exagerada, se pararmos para pensar por um instante – que esse folhetim
tenha sido o último grande lampejo criativo de Gilberto Braga. Sei não.
Em “Babilônia” (2015), sua última novela, o roteirista não só colocou no ar uma trama de sucesso, como botou no primeiro capítulo um relacionamento entre duas senhoras atrizes. Mas não qualquer uma, e sim a dama das artes cênicas Fernanda Montenegro e Nathália Timberg. Elas se beijavam. A encaretada sociedade brasileira não estava preparada para isso. Gilberto Braga precisou lidar com a fúria da crítica, com o amargor dos mais reacionários, com a censura da Globo, onde já se viu mostrar esse tipo de indecência que irá corromper a inocência das nossas criancinhas.
Gilberto
Braga deixou o decorador Edgar Moura Brasil, com quem foi
casado por meio século. (Com informações da Agência Estado)