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Goiânia chega aos 90 anos com cena musical pulsante

DM reconstrói efervescência de outrora e lista cinco grupos para você ficar de olho; veja

André Mols: guitarrista criou primeiro conjunto de blues goiano - Foto: Gustavo Fhoca/ Divulgação André Mols: guitarrista criou primeiro conjunto de blues goiano - Foto: Gustavo Fhoca/ Divulgação

Desculpe, mas vou chorar. Peço licença aos sertanejos para dizer que aqui, em nossa capital, desde sua fundação, há quase nove décadas, a música embala sonhos. Faz a gente chorar. Homem não chora? Bom, quero ver se você é capaz de ser insensível às baladas dos Beatles, aos riffs furiosos dos Rolling Stones e ao grito rebelde do The Who. Pois eu e uma galera não somos, como se observa ao direcionarmos o olhar para a cena roqueira de Goiânia.

Se Tutti Frutti, Made In Brazil, Barão Vermelho, Titãs, Paralamas e Legião vocalizavam sentimentos de fúria juvenil no eixo Rio-São Paulo-Brasília, o rock'n roll existe na Capital goiana há muito tempo. Nos anos 70, por exemplo, as bandas Akuarius Seven e Os Tarântulas já mandavam um progressivo à la Emerson, Lake e Palmer, trio inglês que demonstrou musicalidade refinada - com linhas de violão bem tocadas, sintetizadores viajandões e letras rebuscadas - nos discos “Trilogy” (1972) e “Brain Salad Surgery” (1973).

Era um tempo em que David Gilmour, guitarrista do Pink Floyd, transmitia suas nuances emocionais numa linguagem que unia ternura e raiva, desespero e loucura. A banda abandonou a psicodelia burilada pelo LSD que comprometera a sanidade do cantor, compositor e guitarrista Syd Barrett para ir em direção ao progressivo. Essa mudança de rumo deu em “The Dark Side Of the Moon” (1973), álbum que está, sem pensar demais, entre os dez melhores já feitos. Nessa época, havia ainda Jethro Tull, com “Aqualung” (1971).


		Goiânia chega aos 90 anos com cena musical pulsante
Obra icônica: capa do compacto lançado pela banda Língua Solta. Foto: Acervo

Mas isso fez a cabeça dos jovens nos Estados Unidos e no Reino Unido. Em Goiânia, durante o Comunicasom, surgiu em 1974 a banda Língua Solta, pioneira do rock autoral em Goiás. Antes até existiam outros conjuntos, porém sem o compromisso com a autoralidade discursiva e musical. O grupo não se deixava intimidar e tocava de igual para igual com Casa das Máquinas, Golpe de Estado, Mutantes, Tutti Frutti e até Barão Vermelho, ainda sob os gritos escandalosos de Cazuza e músicos habilidosos lhe acompanhando ao fundo.

O charme do Língua residia na guitarra bluesy tocada por Almir Moreira, ao estilo Keith Richards, mas diferenciando-se do stone por desenvolver uma linguagem própria no instrumento. Seus bends, técnica que consiste em subir o dedo da nota em que se toca, carregavam inconfundível assinatura musical. Marcelo Mota, da banda A Coisa, declarou ao Diário da Manhã que o músico foi um líder no rock regional - Almir morreu em 2021.

“Ele tinha carisma único. Era o fundador disso tudo que chamamos de rock”, afirmou Marcelo a este jornal. Integraram o Língua Solta outros 136 músicos, dentre os quais o cantor Léo Jaime (que indicou Cazuza a Guto Goffi, fundador do Barão, em 81), o baterista Moka Nascimento, o saxofonista Morgado, o baixista Afonsinho e mais uma constelação de instrumentistas. Os goianos, inclusive, conseguiram um feito e tanto, gravando compacto no Rio de Janeiro produzido por Durval Ferreira e Tibério Gaspar, com apoio da Black Rio.

Ebulição

Ou seja, o rock goiano se formou a partir de olhar voltado ao progressivo, ao clássico e hard rock. Nos anos 70, Led Zeppelin e Deep Purple mexiam com a cabeça da juventude. Já Pink Floyd desafiava ouvintes, com letras intelectualizadas e arranjos eruditos. No entanto, assim que os anos 80 chegaram, realizou-se passagem à futura geração. As bandas setentistas, agora, passaram a ser consideradas museus de grandes novidades. Pois é, o novo vem.


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HC 137: banda surgiu no cenário goianiense nos anos 1980 - Foto: Acervo. Foto: Acervo

Um tal compositor cearense (de MPB, veja só) tinha lá suas razões. Segundo Jadson Jr, autor da obra “Uma História do Movimento Pós-Punk em Goiânia nos anos 1980”, o rock goianiense da época passa por listar grupos que ensaiaram e nunca subiram num palco. As ‘bandas’, diz, tinham apenas um amplificador no qual estavam espetados guitarra, baixo e microfone. De forma incompreensível, o vocalista berrava as letras. “Isso era um típico ensaio de rock e típico show de rock até pelo menos 1985”, afirma o pesquisador, na obra.

Tudo isso já tinha acontecido durante os anos 70 no mercado anglófono, com Sex Pistols, The Clash, Exploited, Ramones, Talking Heads e The Cars. No Brasil, país situado na periferia do capitalismo global, grandes centros urbanos, como São Paulo ou Brasília, só anos depois puderam pular ao som cru tocado pelo Ira!, Aborto Elétrico, Mercenárias, Inocentes, Aborto Elétrico e Plebe Rude. Segundo Jadson, três bandas cumpriram papel essencial à cena goiana: Quarto Mundo, 17° Sexo e Restos da Cultura Proibida. “Nessa ordem”, ratifica.

Em um contexto de guitarras sujas, sem melodias e versos desprovidos de metáforas, despontam na Capital goiana a banda HC 137, formada por Cláudio Antônio de Castro. Ele vendia, no final dos anos 80, adereços punks na feira Hippie. É desse período outras bandas inventivas surgidas por aqui: a engajada Hang The Superstar, liderada pelo guitarrista Maurício Motta, e a bem-humorada Rollin Chamas. Depois, entra em cena o hardcore do Exame de Fezes, do jornalista Ulisses Aesse, um dos mais icônicos do rock goiano.


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Pioneiro: André Mols criou primeira banda de blues de Goiás. Foto: Gustavo Fhoca/ Divulgação

Esse cenário, de fato, fertilizou outras bandas. Não só nos anos 80. Claro, o estilo hoje resiste e talvez não haja mais aquela explosão jovem que seduziu a indústria do disco. Só que rock’n roll é isso: estado demencial, barulho no último volume do escárnio, crítica ao sistema. Nessa linha, consagrada pelo punk clássico, surgiu Señores. É um grupo que exibe qualidade, grava álbuns conceituais (disponíveis no streaming) e se engaja em lutas sociais.

Blues

Até o blues - maior expressão da literatura popular surgida no século 20, segundo o escritor Jean Cocteau - foi valente em Goiânia. Apaixonado por B.B King, Elmore James, Albert Collins, Jimi Hendrix e Buddy Guy, o som que saia da guitarra tocada por André Mols tornou a banda Not Yet Blues Band o grupo blueseiro mais famoso da Capital a tocar o estilo. Formada em 1992, a banda explorou a noite goianiense e se deslocou até Brasília, onde se apresentou, de março a dezembro de 1996, no Gate´s Pub. Sempre, óbvio, com a casa lotada.

Na década passada, as bandas indie Carne Doce e psicodélica Boogarins despontaram para o cenário roqueiro nacional. Quando se apresentam por aqui, seus shows arrastam multidões. E provam, de uma vez por todas, que o rock produzido em nossa cidade é de alta qualidade. Desculpe, mas vou chorar. Peço licença aos sertanejos. Vou ouvir um rockão.

Conheça cinco bandas atuais

Produto Interno Groove


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Groove: banda resgata brasilidade em sua música. Fotos: Marcos Rogério Fernandes/ Divulgação

Grupo derivado da Chimpanzés de Gaveta (o disco “Produto Interno Groove” está no Spotify), a Produto Interno Groove é formada por Michel Edere (vocal), Lucas Ribeiro (bateria), Brunno Prudente (baixo) e Matheus Guerra (guitarra). Seu som tem suingue, linha de baixo faz as pernas se mexerem e guitarra de timbre elegantérrimo fala com o compasso da bateria. Um dos melhores grupos goianienses. Lembra “´Pérola Negra”, de Luiz Melodia.

Parece, aliás, que o asfalto aqui se funde com a música da periferia. O grupo despontou no cenário goianiense em 2016 com a nobre finalidade de homenagear a música popular brasileira e seus desdobramentos, com um repertório construído sob altas doses de rock’n roll, mas burilado pela beleza do soul e, sobretudo, desenhado por grooves funkeados. Acompanhe meu raciocínio: como essas referências seriam capazes de dar em música ruim?

É samba-rock, samba-soul e samba-funk, mas - antes de tudo - boa música. Assistir ao show dos caras é tributar artistas que reverenciam a tradição musical brasileira com paixão, sem burocracia estética, o que deveria ser requisito mínimo a qualquer banda que tenha pretensão de interpretar monstros sagrados de nosso cancioneiro. Produto Interno Groove entende que a força dos gênios que interpreta se dá, justamente, pela brasilidade deles.

Mundhumano


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Banda foi formada a partir das conversas musicais entre a cantora Nina Soldera e o músico Kleuber Garcêz. Foto: Mayara Varalho/ Divulgação

Novo disco do grupo, “Os Deus Que Dançam” chegou às plataformas de streaming ano passado. Mas essa história começa pelos idos de 2013, quando a banda foi formada a partir das conversas musicais entre a cantora Nina Soldera e o músico Kleuber Garcêz, as quais sempre tocavam na pauta da música preta tocada em Goiânia, restringida apenas ao samba.

Por isso, a essência do Mundhumano está no primeiro disco, cujo nome, segundo Kleuber, fez referência aos Orixás, deuses cultuados pelo Candomblé. “A imagem de que deuses dançam, sem a existência do pecado, da punição, é como saber da dádiva da vida: devemos sentir a intensidade disso e discernir como o sistema nos rouba esses momentos de vivenciá-los; em suma, é sobre valorizar conquistas coletivas e individuais.”

O apreço pelo candomblé, é bom dizer, aparece já na capa do trabalho, com uma colagem do artista visual carioca Sengambia, cuja obra homenageia e conta a história dos Orixás. Segundo o compositor, a banda conheceu o trabalho do artista na internet, entrou em contato com ele e mostrou as músicas que logo comprou a ideia de fazer a capa.

Ponto forte do disco, as letras também carregam como norte, sobretudo, as questões do povo preto. Logo, vai da exaltação ao protesto, da festa ao lamento. E foram lançadas pouco a pouco nas plataformas digitais. Viabilizado pela Lei de Incentivo à Cultura da Cidade de Goiânia, o trabalho começou a ser feito em 2019, mas foi interrompido pelo isolamento social, já que a banda não pôde se encontrar nos anos de pandemia.

The Galo Power


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Rock direto: Galo Power faz música sem enrolação. Foto: Divulgação

Formado pelos primos Bruno e Evandro Galo em conjunto com o multi instrumentista Rodolpho Gomes, o power trio tem mais de 15 anos de vida e já lançou quatro discos de estúdio - todos eles estão disponíveis nas plataformas de áudio. Fez shows nos mais diferente rincões do País. Afinal de contas, lugar de músico é na estrada, comendo poeira e levando seu som às pessoas. Galo Power é rock clássico, com psicodelia e experimentalismo.

O grupo carrega em sua musicalidade referências ao rock dos anos 60, como The Who - sobretudo nos riffs que lembram Pete Townshend. Emula também Doors, a banda que tinha Jim Morrison como vocalista, nos anos 60. Um dos melhores trabalhos do grupo, “Lysergic Groove” (2013), saiu pela Monstro Discos. Já de cara, na primeira faixa, chamada “Tales of Life”, você identifica um teclado lisérgico ao fundo, linha de baixo que costura a bateria e guitarra gritando fraseados cruéis sobre um universo inebriado na porra-louquice roqueira.

É, de fato, o meu grupo favorito no cenário atual. Não cederam aos ditames da indústria. Fazem música como quem grita na rua às onze da noite. Desde a febre do Boogarins (Galo Power é contemporâneo deles), Goiânia precisava de um rockão descaralhado, no último volume, pra gritar altérrimo ‘foda-se’. Havia uma irritante onda indie em cartaz nos bares (até hoje, se você pensar bem, existe isso). Essa tal coisa que os The Strokes nos legaram nos anos 90. Se o rock é mesmo onda, prefiro olhar pra frente parado.

Mas nem tudo é Strokes, às vezes uma pitadinha saborosa de Who ou Doors ou Zeppelin faz um bem danado à nossa vida. Viva o rock que não deixa a gente se conformar.

Carne Doce


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Carne Doce: indie com textura goianiense. Foto: Instagram/ Carne Doce

A música da Carne Doce oferece calmaria, tranquilidade, boas vibrações e, sobretudo, despeja doses de excitação (não no sentido sexual, mas pela vida e pelos momentos eternizados entre um piscar de olhos) suficientes para que escutemos essa música milhares de vezes. Sem esquecer, claro, das dolorosas letras da vocalista Salma Jô: “Nenhum disfarce no teu olhar/ eu já venci, já não sou mais gostosa/ você goza triste em mim.”

Observemos alguns discos da banda: com “Carne Doce” (2014), de estreia, a recepção pela crítica foi boa. Músicas como “Fetiche”, entre indie e a MPB setentista, renderam elogios. Dois anos depois, o trabalho seguinte, “Princesa”, absolveu a banda como “trilha feminista”, porém Macloys Aquino acredita que o álbum não tinha essa pretensão.

Talvez tal rótulo foi fixado à banda por meio de canções como “Artemísia”, um retrato de uma mulher que abortou, e “Falo”, uma crítica que explora as tensões vividas no patriarcado por uma mulher, é que a banda tenha virado uma voz pública feminista.

Às vezes, a assinatura musical da banda goiana provoca certa estranheza, mas a cada disco, a cada música ou a cada show se consolidam como um dos nomes mais originais do cenário da música alternativa brasileira. E, bem, ouvir “Temporal”, “Comida Amarga”, “Hater” e “Tônus” é uma viagem que nos transporta a um outro tempo, de liberdade, afeto e carinho - sentimento, não tenha dúvida, necessários às nossas vidas.

Boogarins


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Boogarins: psicodelia com sotaque goiano. Foto: Valéria Pacheco/ Divulgação

Tem quem os defina como ‘The Doors do Cerrado’. O fato é que o som dos caras é permeado por sensualidade. Pós-tropicalistas? Talvez, sei lá. Goianidade, sim, isso tem - e de sobra. O lance ali é outro: faz você sentir o sabor das notas tocadas no embalo da sensualidade chapada. Vale como esquenta para a apresentação a audição no streaming dos discos “As Plantas Que Curam”, “Manual”, “Lá Vem a Morte” e “Sombrou Dúvida”.

Boogarins faz parte da geração de ouro que saiu dos festivais e bares da Capital goianiense para impressionar o mundo. Ao lado do quarteto, pode-se colocar também a Carne Doce (cuja sonoridade é hiper gostosa, dançante e transante) como outra expoente da forte cena indie da nossa cidade. Mas o caso dos pós-tropicalistas é um pouco diferente, bem diferente, por sinal: produzem um som tão original que é até difícil enquadrá-lo ao que é feito por aí.

Na década de 2010, a banda goiana Boogarins resgatou para o universo do indie rock um gênero que estava relegado a segundo - terceiro, vai lá, pra ser preciso - plano: a psicodelia. Tem quem os ache uma mistura sensual, excitante e elegante do experimentalismo eternizado pelos Mutantes nos anos 70, com uma pitada pós-tropicalista típica dos Novos Baianos e uma colherada da fritação lisérgica do Pink Floyd. Ou quem veja na sonoridade dos goianos uma cópia da banda australiana Tame Impala. Mas, seja lá o que for, a música do Boogarins é interessante. Só que o rock precisa dizer, não enrolar e nem se alienar.

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