Era meia-noite quando a Nação Zumbi atacou com aquele consagrado maracatu atômico, no Palácio da Música, Centro Cultural Oscar Niemeyer. De imediato, tambores faziam nossos ouvidos ingressar numa viagem ao redor dos ritmos pernambucanos como coco ou ciranda. Mas ali – rapidamente – se identificou o desfalque importantíssimo da guitarra heavy metal e de suingue funkeado tocada por Lúcio Maia, desligado do grupo desde 2022.
Havia uns caranguejos com cérebro, em meio aos quais, por dever do ofício e desvario roqueiro, eu me encontrava. Alguns até eram amigos. Loucos pelo manguebeat, berravam a cada canção. E dançavam na pista, iam ao banheiro esvaziar a bexiga, paravam no bar atrás de mais uma birita, bebiam chope de tempero goiano e cantavam versos de poesia social.
Tudo normal, tudo certo, numa boa. Quer dizer, mais ou menos: são 30 anos do disco “Da Lama ao Caos”! Era preciso sair da lama e enfrentar os urubus, aconselha Chico Science, pela voz de Jorge du Peixe. Afinal de contas, na virada dos anos 80 para os 90, a capital pernambucana estava tal qual o poema de Manuel Bandeira: “Recife morto, Recife bom”.
Modernizar o passado é evolução. E viva Zapata, Sandino, Zumbi e Antônio Conselheiro. Isso mesmo: banditismo por necessidade num monólogo ao pé do ouvido, sacou? No caso daqui, o monólogo, digamos, se dá pelo que os caras tocam no palco. Aplausos a Jorge Du Peixe (voz), Dengue (baixo e direção musical), Toca Ogan (percussão), Marcos Mathias (percussão), Gustavo Da Lua (Percussão), Tom Rocha (bateria) e Neilton Carvalho, guitarra.
Três pessoas, a grosso modo, não podem servir como base para medir quantidade. Mas passa a ser, por exemplo, se você levar em consideração que foram três pessoas em, sei lá, sete ou oito minutos
Horas antes, às 21h30, o punk recifense dos anos 80 estilhaçou as vidraças da desigualdade, num show cuja energia propagada poderia tirar uma metrópole do marasmo humano. Difícil aceitar a ideia de que a banda – de estética hardcore e discurso afiado – se tornou Patrimônio Cultural do Recife sem jamais contribuir para a cena cultural da localidade em que se insere. Acreditar nisso é tão nonsense quanto tolerar a fome, a miséria ou o autoritarismo, mas – ufa! – nenhum dos presentes endossava tamanho desrespeito.
Ao contrário, constatou-se na fila da bilheteria o seguinte: “queremos ver Devotos”. Foi o que a reportagem ouviu de pelo menos três pessoas ali. Três pessoas, a grosso modo, não podem servir como base para medir quantidade. Mas passa a ser, por exemplo, se você levar em consideração que foram três pessoas em, sei lá, sete ou oito minutos. Eram punks de meia idade, roqueiros devotos, gente que nunca os assistiu – mas, em instantes, iria vê-los.
Quem não conseguiu ir ao Noise, mas se interessou por escutá-los, preste atenção aqui, ó: os Devotos lançaram há dois anos o disco “Punk Reggae”, produzido por Pedro Diniz, da banda Mundo Livre S/A. São dez gravações de sonoridade marinada no reggae. Uma das faixas, inclusive, possui participação de Chico César, cantor de texto certeiro que se mostrou, em mais de uma ocasião, preocupado em combater práticas identificadas com a extrema direita.
Teve metal no Noise, claro. O estilo foi representado, com destaque, pelos gaúchos da Krisiun, que estão na estrada desde os anos 90. As guitarras trovejam riffs martelantes, enquanto o baixo e a bateria desarrumam a cama em que as seis cordas elétricas se deitam, ao passo que os goianos do Mechanics trouxeram ao festival de 30 anos discursos politizados e caóticos. Sobre os conterrâneos, eis um detalhe pra ninguém botar-lhes o talento em cheque: só eles tocaram em todas as edições do Noise. Pensar em Noise é, sem dúvida, pensar em Mechanics.
Já as mulheres, com The Mönic, mandaram ver um rockão de garagem, tirando a galera do chão. E outra mulher, a vocalista Nina Soldera, da banda Mundhumano, encantou com uma original fusão entre rock e música afro-brasileira, num ritmo pulsante tocado ao violão à moda Jorge Ben Jor. Nessa mesma toada, Terra Cabula se saiu bem ao encarar a plateia, tarefa longe das mais fáceis. Entretanto, a presença deles pluralizou o festival goianiense.
A penúltima atração do primeiro dia, sexta-feira, se guiou pelo clima de despedida. De toque latino, molejo sensual e letras engajadas, Francisco, El Hombre subiu ao palco com os fãs sabendo que seria uma apresentação derradeira. E, como era esperado, as pessoas saíram do chão, cantaram, extravasaram, pularam, enlouqueceram. Ou será que apenas dizer adeus, independente do público ali presente, não é suficiente e, por não sê-lo, se faz ato catártico?
No sábado, com parte do público sentindo a ressaca da noite anterior, findada em alto nível por Francisco, El Hombre e Nação Zumbi, foi dia de curtir o rockabilly de Los Clandestinos Trio. Milhares estavam no Oscar Niemeyer e sequer conheciam o som retrô dos paulistanos. Erro crasso, o nosso. São canções influenciadas pelo que há de melhor no rock dos Stones, em Elvis Presley, Little Richard e Muddy Waters. Voltamos aos anos 60.
Após a lisergia gaúcha apresentada por Lucas Hanke & Cromatismo de Sensações e o thrash metal carioca executado pela Dorsal Atlântica, o que se viu – em altíssimo volume, aliás – era um grupo de roqueiras, as Nervosas, mostrando que a música extrema é, sim, para as garotas. A alta performance deixou barbudos de queixo caído, como se eles não imaginassem, ou pior, não levassem a sério a capacidade demolidora das moças.
De Brasília, cidade situada a apenas 200 km da capital, veio o duo YPU. Atenta ao show da dupla, Letrux chamou Ayla Gresta para dividir os microfones na sensual “Que Estrago”, música lançada pela carioca no cultuado “Em Noite de Climão”, de 2017. Talvez tenha sido um dos pontos altos do festival, desses que valem a pena o esforço e a grana depositados no rolê – e Letrux não decepcionou. Casais se beijavam na pista, solteiros confabulavam entre goles de chope, mas não ter gostado do espetáculo era como nadar contra a corrente.
Depois de Letrux, que se apresentou no Palácio da Música, foi a vez de Terno Rei subir ao palco, fechando a noite de sábado. É um indie, assim como também é a música tocada pelos goianos da Carne Doce, cujo show concentrou grande quantidade de pessoas no palco montado na área externa do Oscar Niemeyer. Domingo foi a vez de curtir, dentre as principais atrações, Boogarins e Violins, mas também teve Rancore, Maduli, Blowdrivers, além de DJs e do clássico Estúdio Noise. Foram bons dias pra descobrir novos sons.
Sexta-feira, 12
00h45 - Nação Zumbi (PE) – Palco Palácio da Música
23h15 - Francisco, El Hombre (SP) – Palco Palácio da Música
22h30 - Krisiun (RS) – Palco Esplanada
22h00 - Mechanics (GO) – Palco Palácio da Música
21h30 - Devotos (PE) – Palco Esplanada
21h00 - The Mönic (SP) – Palco Palácio da Música
20h30 - Terra Cabula (GO) – Palco Esplanada
20h00 - Mundhumano (GO) – Palco Palácio da Música
19h30 - Urumbeta do Espaço (GO) – Palco Esplanada
19h00 - Black Lines (GO) – Palco Palácio da Música
18h30 - Cabrosa (GO) – Palco Esplanada
18h00 - Gladio Tempus (GO) – Palco Palácio da Música
Sábado, 13
00h45 - Terno Rei (SP) - – Palco Palácio da Música
23h15 - Letrux (RJ) - – Palco Palácio da Música
22h30 - Carne Doce (GO) - – Palco Esplanada
22h00 - YPU (DF) - – Palco Palácio da Música
21h30 - Nervosa (SP) - – Palco Esplanada
21h00 - Johnny Suxxx (GO) - – Palco Palácio da Música
20h30 - Dorsal Atlântica (RJ) – Palco Esplanada
20h00 - Lucas Hanke & Cromatismo de Sensações (RS) - – Palco Palácio da Música
19h30 - Los Clandestinos Trio (SP) – Palco Esplanada
19h00 - Buk (PA) - – Palco Palácio da Música
18h30 - Spiritual Carnage (GO) – Palco Esplanada
18h00 - Ousel (GO) - – Palco Palácio da Música
17h30 - Fat Drive Factory (GO) – Palco Esplanada
17h00 - Synx (GO) - – Palco Palácio da Música
16h30 - Vento Cobre (GO) – Palco Esplanada
16h00 - Sanguínea (GO) - – Palco Palácio da Música
Domingo, 14
22h45 - Boogarins (GO) – Palco Palácio da Música
21h15 - Rancore (SP) - – Palco Palácio da Música
20h30 - Violins (GO) – Palco Esplanada
20h00 - Maduli (GO) - – Palco Palácio da Música
19h30 - Blastfemme (RJ) – Palco Esplanada
19h00 - Red Sand King (GO) - – Palco Palácio da Música
18h30 - Galinha Preta (DF) – Palco Esplanada
18h00 - Blowdrivers (GO) - – Palco Palácio da Música
17h30 - Verbase (MG) – Palco Esplanada
17h00 - Lâmpada Mágica (GO) - – Palco Palácio da Música
16h30 - Teia (GO) – Palco Esplanada
16h00 - Uttara (GO) - – Palco Palácio da Música