Clássico indiscutível dos videogames que completa 20 anos, “Grand Theft Auto: San Andreas” foi acusado de glorificar a violência. Quando o game saiu, em 2004, houve quem questionasse se era realmente aceitável jogar algo em que é possível ser atendido por uma prostituta na rua e depois matá-la para reaver o seu dinheiro. Não tenha dúvida de que é - pois o objetivo não é assassinar as indefesas trabalhadoras do sexo, até porque algumas delas carregam uma pistola na bolsa e, ao menor sinal de perigo, disparam contra você.
Atacá-las é escolha sua, no entanto. Há um enredo sobre o qual você deve mergulhar para que o game seja todo liberado. É uma história grande, com arco narrativo complexo, personagens de nuances psicológicas, dramas pessoais e problemas familiares. Ao contrário de “Vice City” e “III”, títulos que antecederam “San Andreas”, temos não só uma cidade para explorar, mas três - e todas estão ambientadas no submundo da cultura hip-hop californiana, embora uma delas, Las Venturas, seja baseada na desértica Las Vegas.
Podemos levar Carl Johnson, o CJ, para dezenas de diversões absolutamente inúteis, como comer fast food até passar mal e suar numa academia em cima de uma bicicleta ergométrica. Além de deixar o personagem com músculos apolíneos, o que faz com que ele tenha certa agilidade para pular muros e maior fôlego para fugir da polícia nas missões, os exercícios queimam as calorias consumidas por meio de pizzas e hambúrgueres, que reparam energia. Provocar os moralistas me parece ter sido o objetivo dos criadores Dan e Sam Houser.
O jornalista David Kushner, autor da reportagem “O Grande Fora da Lei - A Origem do GTA”, revela que tanto Dan quanto Sam eram aficionados pela cultura dos Estados Unidos. Criados sob um regime educacional pesado no Reino Unido, eles cresceram ouvindo Dizzy Gillespie e cultuando filmes de gângsteres, razão pela qual os títulos da franquia são em mundo aberto e nos oferecem ruptura com o tédio da vida. “San Andreas”, jogo mais vendido para PlayStation 2, com 27,5 milhões de cópias, é - ainda hoje - interessante.
“San Andreas” podia ser uma ironia ferina do escritor radical Tom Wolfe, em cujas obras radiografou a sociedade norte-americana. Entretanto, será que Wolfe teria conseguido retratar a era das gangues em Los Angeles com tamanho senso de deboche, como fizeram os irmãos Houser, responsáveis pelo sucesso da franquia “Grand Theft Auto”? Ou zombaria daqueles tempos em que o tráfico de cocaína, suas luzes de néon e ternos de cor pastel cafonizavam a vibe de Miami nos anos 80? Para a revista “Time”, a resposta é não.
Tudo começa com CJ caindo na chantagem de dois fardados. Jogam-lhe num beco da gangue Ballas, arqui-inimiga da Grove Street Family, da qual o protagonista faz parte. Usando bike, sai do local e, ao pôr os pés em casa, no centro de Los Santos (inspirada em L.A), depara-se com o caos instaurado: família desestruturada, amigos de infância marchando rumo ao desastre e mãe assassinada. Mas, se você quiser, pode roubar um carro, agredir trabalhadores, espancar velhinhas, afrontar a ordem social. Perceba: só se você quiser.
Pesquisa
Esse caos urbano, contudo, pode estimular a violência na gente? Ao contrário, serve como descompressão da raiva, observa estudo desenvolvido no Departamento de Ciências Comportamentais e Cognitivas da Universidade de Luxemburgo, publicado no periódico “Physiology & Behavior”. Segundo o levantamento, os jogos ajudam a diminuir o estresse, pois põem lá embaixo os hormônios. A pesquisa mostrou ainda como os videogames violentos e não violentos afetam níveis de cortisol (estresse) e testosterona (violência).
Em trecho da pesquisa, o psicólogo Gary L. Wagener conta que se interessou pelo tema por ser um gamer. “Jogava porque era divertido, porque gostava da competição; jogava para desfrutar de boas histórias, mas também para aliviar o estresse da minha vida diária”, afirma Gary. Foram analisados 54 homens que jogaram uma passagem violenta ou não violenta de “Uncharted 4: A Thief's End” durante 25 minutos. Eles forneceram amostras de suas salivas em três etapas: no início, após 25 minutos de jogo e 20 minutos após o jogo.
A noção de que a saga vivida por CJ possa ter inspirado crimes terríveis soa frágil. Pouca gente saiu por aí ensandecida por ter visto Walter White metralhando nazistas no último episódio da série “Breaking Bad”, Quentin Tarantino fuzilando o maníaco Adolf Hitler num teatro ou Scorsese filmando Jimmy e Thomas esfaqueando um cara no porta-malas de um carro. Essas obras retratam a violência num contexto lúdico. No último exemplo, ficamos escandalizados com tal brutalidade pela perspectiva de Henry, que nos representava ali.
Já joguei todos os jogos da franquia “Grand Theft Auto”. As cenas de violência, como a motosserra à la Tony Montana de “Vice City”, serviram para criar em mim ainda mais repulsa a isso. Me escandalizei quando CJ enterra um sujeito vivo e joga cimento em cima dele. Achei repulsivo ter de cruzar Liberty City (versão fictícia de Nova Iorque da Rockstar) para que um médico vendesse os órgãos de um homem que carregamos no porta-malas. O que dizer, então, de Trevor - de “GTA 5” - pisoteando a cabeça de um cara até matá-lo?
Nada que já não tenha sido visto por nós no cinema. Foi essa comparação do escritor Daniel Galera no ensaio “A Violência Nasce Antes das Telas”, publicado na revista “Quatro, Cinco, Um”: “nada que eu já não tivesse encontrado no cinema: lembro, por exemplo, da sequência de ‘Amor à Queima-Roupa’ em que James Gandolfini arrebenta a cara de Patricia Arquette. Nada, em nenhum videogame, jamais me causou mal-estar tão forte e duradouro”. É ultrapassada - e chocante - a cruzada moral contra jogos eletrônicos. Pode apostar.