A cabeça balança pra frente e pra trás. Vai e vem, vem e vai. Uma guitarra ataca no terceiro tempo do compasso. Ritmo lento, dançante, esse é o xis da coisa. “Muito antes do rio se tornar pó/ homens costumavam conversar/ havia alimento suficiente para todos eles/ as ervas cresciam tão livres/ pensávamos que também deveríamos ser livres”, canta o guitarrista e vocalista Harrison Stafford, na abertura do disco “Young Tree”, de 1999.
Pode-se dizer que a banda californiana Groundation faz um reggae jazzístico. O sabor das experimentações musicais de Duke Ellington ganha uma pitada James Brown, num som único, de inconfundível assinatura e vocais harmoniosos que remetem a Otis Redding. Até aqui, são dez discos de estúdio, um ao vivo e turnês de sucesso em pelo menos 50 países. Só no Brasil, por exemplo, já viveram em cima do palco experiências sui generis: fãs histéricos, bis intermináveis, gritos eufóricos. É, nós geralmente amamos música. Difícil viver sem.
Com 25 anos de carreira, o grupo tem duas datas marcadas, no Bolshoi Pub, em Goiânia, na próxima terça-feira, 28, e quarta, 29. A apresentação é anunciada pela casa goianiense com status de histórica. Um dos dias - o segundo - está com ingressos esgotados. Tamanha procura por assistir aos californianos levou os organizadores a abrirem mais um dia, para o qual ainda há bilhetes à venda a partir de R$ 100. Quem gosta de reggae não vai perder.
Ora, a emoção de assistir a um palmo de você os caras que gravaram com os mestres jamaicanos é grande. Capaz até de a memória se derramar em lembranças das tardes nas quais passou acompanhado pelas levadas, grooves, metais e bateria do Groundation. Pense que Stafford e companhia dividiram estúdio com Israel Vibration, Marcia Griffiths e Judy Mowatt (Bob Marley & The Wailers), The Congos, Don Carlos, The Abyssinians e Pablo Moses. Esses artistas estão para o gênero caribenho como Muddy Waters está para o blues.
Aliás, se há uma banda possível de o Groundation comparar-se é os Stones - não digo em termos sonoros ou estéticos, para os quais de fato não existem paralelos, e sim em respeito aos artistas roots. Se a música dos californianos nunca foi tão familiar ao leitor, aí te faço um apelo: vá agora mesmo ao Spotify, Apple Music, Youtube, enfim recorra a qualquer streaming, de modo a entender melhor sobre o que falo. Mas, veja só, adianto: é boa música, do tipo que faz o sujeito se repetir na audição e, lá pelas tantas, se perceber apaixonado.
Considerado Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco, o reggae é mesmo apaixonante. É o som dos subúrbios de Kingston, capital da Jamaica, ilha localizada no Caribe. A Unesco define o estilo musical, por exemplo, como “um amálgama de numerosas influências musicais, incluindo formas jamaicanas anteriores, assim como linhagens caribenhas, norte-americanas e latina”. Na maioria das vezes, suas letras abordam o racismo, criticam intolerância, combatem injustiças e ressaltam a importância do amor à humanidade.
Organicidade
Por trás da estrutura harmônica simples, existe uma organicidade interessante: Bob Marley, Jacob Miller, Joseph Hill, Justin Hinds, Lloyd Knibb, Dalton Brown e Peter Tosh são nomes que elevaram o gênero a outro patamar. Eles cantam os anseios de uma sociedade explorada pela metrópole, a Inglaterra, cuja independência se alcançou apenas em 1962. Mesmo com todos os problemas gerados por uma colonização opressora, a pequena nação caribenha levou à humanidade ritmos inconfundíveis, como ska, rocksteady, reggae, dub e dancehall. Nas últimas cinco ou seis décadas, é impossível quem não tenha bebido nessas fontes.
Gilberto Gil não só ingeriu boas doses desse tipo de som, como resolveu gravar os hinos de Bob Marley no disco “Kaya N'Gan Daya”, lançado em 2002. Saindo da seara tropicalista, outro artista - melhor dizendo, uma banda - impactado pela música caribenha é Os Paralamas do Sucesso, cuja sonoridade carrega consigo em suas veias a herança pulsante da latinidade. Já o Titãs foi além: convidou o lendário Jimmy Cliff para gravar no “Acústico MTV” a faixa “Eles Quem Meu Sangue”. Cliff é popular no Brasil desde o final dos anos 1960, quando por aqui participou dos festivais de canções realizados pela TV Globo.
Na estrada há 25 anos, Groundation possui milhões de fãs em território pátrio. Cá pra nós, longe de ser novidade, não é? Se nos discos embarcam nas ideias musicais que fervilham na cabeça de Harrison Stafford, é certo também que criam sons a partir das influências de Miles Davis (especialmente no cristalino sopro de trompete) e Duke Ellington (traços caribenhos e afro-americanos). E Stafford é, por assim dizer, um acadêmico: licenciou-se pela Sonoma State University em jazz performance e, uma vez formado, dera aula na mesma instituição de história da música reggae. Portanto, conhecimento de causa não lhe falta jamais.
Como nos ensinou o próprio Ellington: “Quando um bom músico compromete sua aspiração na música e a rebaixa ao que as massas desmioladas esperam, ele não está sendo honesto consigo mesmo. Um artista deve ser verdadeiro consigo mesmo. Se o dinheiro é mais importante para ele do que sua música, ele está se entregando à prostituição”. Tranquilizem-se, amigos, porque desse mal Groundation não morrerá. Ainda bem.
Groundation
Terça, 28, e quarta, 29
21h
Bolshoi Pub - R. T-53, 1140 -
Quadra 90 - Lote 08 - St. Bueno, Goiânia
A partir de R$ 100
Ingressos pelo Sympla