Cultura

Historiadora disseca como violência contra a mulher faz parte da formação da sociedade brasileira

Marcus Vinícius Beck

Publicado em 14 de novembro de 2021 às 23:33 | Atualizado há 3 anos

Mary Del
Priore, 69, colocou a sexualidade brasileira na lista dos mais vendidos, com
“Histórias Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do Brasil”. Especialista
em história brasileira cujas credenciais intelectuais lhe conferem respeito,
ela é professora da USP, PUC-RJ e estudou pós-doutorado na França. Mas sua vocação
mesmo talvez seja contar histórias, ao exibir um currículo que esbanja mais de
50 livros que reconstroem o passado para apontar ao presente e têm ainda 20
prêmios literários, entre os quais, três jabutis – considerada a maior láurea desse
meio no brasileiro.

Mary destrincha, nas palavras do escritor Moacyr Scilar, a relação entre colonizadores, índios e escravizados, nudez e pudor, repressão inquisitorial, homossexualidade, prostituição, uso da lingerie, educação sexual, aborto, folia carnavalesca, pedofilia, anticoncepcional, revolução sexual, erotização da publicidade, movimento feminista, censura ditatorial… A historiadora submete o leitor ao pensamento de autores que vão de Gregório de Mattos a Gilberto Freyre, a filmes da pornochanchada da Boca do Lixo, a romances clássicos da literatura, a revistas: a ficha, uau!, é grande. 

Autora de
livros como “Corpo a Corpo com a Mulher” ou “História do Amor no Brasil”, cada
um deles com mais de 40 mil exemplares vendidos quando lançados, lá pelos idos
dos anos 2000, a escritora faz parte de uma geração que rompeu tabus sociais.
Para ela, a chegada da pílula e a entrada das mulheres no mercado de trabalho
criou possibilidades de sobrevivência sem precisar de “um homem para chamar de
seu” – como canta Erasmo Carlos, em “Mesmo Que Seja Eu”. “Senhoras da própria
sexualidade e do dinheiro, fazem suas escolhas”, diz Mary, em entrevista ao DM.

A
escritora, porém, faz uma ressalva: “existem as que insistem em ser objeto
sexual e as outras que querem caminhar com as próprias pernas.” Como exemplo de
goianas que escolheram pela segunda opção, ela cita a cantora Marília Mendonça
e a jornalista Cristiana Lobo. “Há espaço para todas. O importante é a
tolerância e a vontade de construir um mundo melhor na base do diálogo e da
negociação”, analisa a autora, que estará em Goiânia na segunda, 15, no ciclo
de palestras Diálogos Contemporâneos.

Para o
evento na capital goiana, Mary vai explicar a construção da violência contra a
mulher na sociedade brasileira. Há quem a explique, por exemplo, pelo
patriarcalismo e machismo que atribui às mulheres algo que pertence ao pai, ao
marido, ao patrão ou ao dono. Elas, portanto, seriam um “bem pessoal”, ao mesmo
tempo em que outros debitam um tipo de comportamento que incita a violência. “Mulheres
gostam de apanhar”, era o que dizia o cronista Nelson Rodrigues, reacionário
contumaz.

Será que essa frase foi com ou sem ironia? “Alcoolismo, dependência química, desemprego e miséria social são fatores invocados quando se deseja interpretar o abuso da força, a intimidação, a brutalidade sobre o sexo feminino”, atesta a escritora. “O século 21 trouxe maior tolerância e quebra de tabus. Em meio a mudanças, a temática das desigualdades, das feministas do século passado, ficou relegada a segundo plano, em benefício da temática das identidades. A questão maior foi a de recusar as identidades que se lhes atribuíam (mãe, esposa).”

Brasileiras

Mãe de três filhos e professora universitária, Mary revela que fez o fazem milhares de brasileiras: juntou família, trabalho e dedicação às suas escolhas. “Sempre alimentei a vontade de fazer o melhor que faço. Não há nada de anormal. A receita serve para qualquer profissional”, explica Mary Del Priore, que odeia a boneca Barbie. Ela explicou isso numa entrevista à Revista Trip, em 2011, quando publicou “Histórias Íntimas”. Segundo a historiadora, foi com a vinda da Mattel ao Brasil, nos anos 70, que a mulher brasileira começou a ficar obcecada em ser loira, magra, consumista.

Mary
acredita que os homens estamos começando a compreender que o machismo também
nos faz mal. Historicamente, continua, o patriarcado legitimou a opressão nossa
por nós mesmos e, óbvio, a violência contra a mulher, mas há tempos que esse
modelo do todo-poderoso guerreiro político e sexual, que não chora, ou evita
expressar seus sentimentos e emoções, começou a derreter, a ponto de
nostálgicos deploraram uma “crise de virilidade”. “Ao fazer do mito da
superioridade do macho o fundamento da ordem social, eles justificaram a submissão
delas”, aponta.

“Com
isso, também se condenaram a reprimir suas emoções, temer a impotência, odiar a
feminização e cultivar o gosto da violência e da morte heroica. Ao proibir-se
de chorar, substituiu a tristeza pela cólera. O dever de virilidade se tornou
um fardo, e “tornar-se homem”, um processo difícil e, por vezes, cruel.”
Questionada se “Histórias Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do
Brasil”, uma de suas obras mais famosas, trata de feminismo, Mary é categórica:
o livro é sobre a resistência de milhares de mulheres do passado e presente
contra o patriarcalismo.

“Amparadas
pelo letramento e a educação, milhares venceram a submissão, defenderam valores
e criaram suas famílias. É delas, as sobreviventes e guerreiras que falo. Não
faz bem viver de coitadismo. É preciso lembrar que as mulheres sempre souberam
reagir”, arremata a escritora. Sim, Mary Del Priory nos oferece instrumentos
para refletir sobre a formação da sociedade brasileira e, mais, estimula que
olhemos nós, homens, para dentro uns dos outros: a violência contra a mulher
não pode continuar.

Diálogos
Contemporâneos – Mary Del Priory

Quando: Segunda-feira, 15

Horário: às 19h

Onde: Teatro Goiânia

Gratuito


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