‘Ivone Lara era genial’, diz historiadora, que lança livro sobre dama do samba
Estadão Conteúdo
Publicado em 13 de abril de 2022 às 19:18 | Atualizado há 3 anos
João
Luiz Sampaio
Há cem anos, no dia 13 de abril de 1922, nascia no Rio de Janeiro Dona Ivone Lara. Há cem anos, nascia uma “compositora cuja riqueza melódica a coloca no panteão dos grandes autores não apenas brasileiros, mas do mundo”.
A
opinião é da historiadora Mila Burns, professora de Estudos Latino-Americanos
do Lehman College (City University of New York). Ela lançou em 2009 o livro “Nasci
para Sonhar e Cantar – Dona Ivone Lara: a Mulher no Samba” e, no domingo, 17,
lança “Sorriso Negro”, seu segundo trabalho sobre a compositora, no Museu
Histórico da Cidade do Rio de Janeiro. No site da editora Cobogó, que a
publicou, a obra sai a R$ 49,90.
“Ela era
genial. Uma grande musicista, a importância de seu trabalho é inconteste. E ela
significou muito também para o movimento feminista negro, um aspecto que não
costuma ser tão lembrado”, diz Burns.
Dona
Ivone Lara nasceu em uma família musical. A mãe era cantora, o pai, violinista.
Na casa do tio Dionísio Bento da Silva, participou de inúmeras rodas de choro.
Com a Tia Teresa, ouviu as cantigas dos escravos negros.
Mais
velha, estudou música com Zaíra de Oliveira e Lucília Villa-Lobos, pianista e
mulher do compositor, com quem Ivone Lara chegou a se apresentar em algumas
ocasiões. Sua primeira música foi composta aos 12 anos – Tié, em parceria com o
tio, Mestre Fuleiro, e o primo.
Aos 17
anos, aprendeu cavaquinho – e resolveu se inscrever no concurso da Escola de Enfermagem
Alfredo Pinto, onde se formou em 1943 (dois anos depois, começaria a estudar
para ser assistente social; durante trinta anos, atuou como enfermeira,
trabalhando no Instituto de Psiquiatria do Engenho de Dentro, ao lado da
doutora Nise da Silveira).
Ao mesmo
tempo, seguia na música. Frequentando a escola da samba Prazer da Serrinha,
compôs em 1947 “Nasci para Sofrer”, canção usada no desfile do ano. Não era
feito pequeno. E, em 1965, outro momento histórico: tornou-se a primeira mulher
a integrar a ala dos compositores do Império Serrano.
“A
música de Dona Ivone Lara possui uma riqueza melódica muito grande”, diz Burns.
“Ela te pega pela mão e te leva para lugares diferentes. Sempre há algo novo. O
cantor João Cavalcante está gravando um disco com canções dela e, ouvindo o
primeiro single, fico impressionada: o piano segue em uma direção, a sanfona,
em outra, o mesmo com o violino, com a voz. Ela fazia com que várias melodias
conversassem ao mesmo tempo.”
E
continua: “Um de seus parceiros, Délcio Carvalho dizia que, tocando com Dona
Ivone Lara, ela podia começar um improviso com a voz e dali saía uma outra
música.”
Mulheres
sambistas
Burns
conta que, ao desenvolver o mestrado em antropologia no Museu Nacional, tinha
como objetivo estudar as mulheres do samba: sempre a intrigava a presença de
muitos compositores e poucas compositoras. E, orientada pelo antropólogo
Gilberto Velho, acabou focando no trabalho de Ivone Lara (a dissertação foi
adaptada e virou o livro “Nasci para Sonhar e Cantar”, lançado pela editora
Record). “Ela foi a exceção que prova a regra, porque conseguiu conquistar
espaço em um universo profundamente machista”, explica a historiadora. E como
isso se deu? Para Burns, não há apenas uma resposta possível.
“Primeiro,
ela era uma grande musicista. Em segundo lugar, como acontecia com muitas
mulheres de destaque, ela teve por trás a autorização de um homem. Seu tio,
Mestre Fuleiro, foi um dos fundadores do Império Serrano. E ela entendia o
machismo, e criava estratégias para lidar com ele. Escolhia muito bem os
parceiros ou os momentos certos de mostrar seu trabalho”, analisa.
O
próprio fato de ter um trabalho fixo fora do samba a ajudava. “Pode parecer
paradoxal que estar fora do ambiente do samba a tenha ajudado. Mas ela tinha
muito claro que uma carreira em paralelo era uma base de sustentação que lhe
permitia trabalhar com a música da maneira como queria.”
Há
quatro anos, Burns foi convidada pela editora Bloomsbury a escrever um livro
sobre o álbum “Sorriso Negro”, de 1981 (que seria editado pela Cobogó no
Brasil). “Eu já estava distante desse universo, trabalhando no doutorado sobre
a ditadura militar no Brasil. Mas me pareceu interessante abordar o aspecto
político do álbum, que é lançado já no final da ditadura. E me propus a
entender esse lado dela”, diz.
“Durante
as muitas conversas que tivemos na época do mestrado, ficou bem claro para mim
que ela nunca atribuiu para si mesma uma postura de ativista. O que me fez
cunhar um outro temor, resistência pela existência. Ela nunca se ligou a
partidos políticos, com o movimento feminista ou com o movimento negro. Mas a
música dela teve um impacto grande nesse debate justamente por ela ter sido uma
mulher que ocupou um espaço importante em um contexto machista.”