É o começo do século 20, e uma família branca posa para um retrato com pompa. Vestidos com elegância, um casal e duas crianças olham rígidos para a câmera, na frente de um painel que simula uma paisagem campestre. Segurando a tela, nos cantos da fotografia, estão duas pessoas negras.
A imagem foi feita por Chichico Alkmim, retratista mineiro bastante visado na época. A mulher e a menina negra, que se revelaram só quando o filme foi recuperado cem anos depois, não apareciam no recorte original da foto. Exposta em grande escala no Instituto Moreira Salles, a imagem se tornou um símbolo didático do que as famílias abastadas expunham ao mundo —e do que escondiam.
O novo livro da antropóloga Lilia Schwarcz, "Imagens da Branquitude", se parece com caminhar ao lado da autora em um museu. A historiadora conduz um caminho revelador de como a cultura branca cristalizou uma estética que firma a si mesma como norma e todo o resto como "os outros" —quando esse resto merece alguma atenção.
"A produção brasileira é muito mais arrojada, erudita, na análise de documentos escritos que na análise de produção visual" Lilia Schwarcz, antropóloga
Assim, a branquitude se exibe numa quase contradição. "É uma presença tão onipotente que vira uma ausência", afirma a professora de 66 anos em entrevista. "É um poder de tal maneira disseminado que não precisa ser nomeado, porque está em toda parte."
O caso da fotografia de Alkmim é ilustrativo porque mostra como essa impressão de onipresença é, na verdade, construída. E para isso é preciso acompanhar "o caminho da imagem", ressalta Schwarcz, interessada no contraste entre "o que nasce para ser público e o que nasce para ser resguardado".
Talvez o enquadramento total dessa foto de família nunca fosse revelado, diz ela, obliterando o trabalho negro por trás de sua realização. E é assim que acontece o processo de apagamento histórico sobre o qual tanto se fala na literatura antirracista.
A antropóloga, aliás, diz crer que seu livro não traz nenhum lampejo particularmente novo aos estudos sobre a branquitude, estabelecidos por autoras como Cida Bento, Lia Vainer Schucman e Sueli Carneiro. O que ela propõe de inovador é a abordagem.
"A produção brasileira é muito mais arrojada, erudita, na análise de documentos escritos que na análise de produção visual", afirma, brincando que avalia tantas teses de ciências humanas que foi apelidada de "arroz de banca". "Estou cansada de ver as imagens ganharem lugar de anexo ou apêndice."
Isso é um contrassenso, segundo ela, porque "nós somos uma civilização da imagem". E é por essa cultura visual que se concretiza um imaginário tão firme que nem percebemos que está ali.
O maior símbolo que o livro traz são os sapatos. Talvez você nunca tenha notado, mas pessoas negras sempre foram retratadas descalças nos quadros do Brasil Império, reflexo tanto da severidade do trabalho escravo quanto de sua falta de liberdade —afinal, é difícil ir longe com as solas desprotegidas.
Os pés continuaram assim mesmo após a abolição, sempre que o artista sugeria, consciente ou não, a subalternidade dos negros. É um exemplo dos "imensos detalhes" que Schwarcz gosta de destacar.
"Imagens da Branquitude" traça um percurso quase cronológico, das pinturas de pessoas indígenas no século 16, marcadas pelo canibalismo e pela nudez que consternavam os europeus; até as campanhas agressivas de sabonete, já no século 20, que ligavam a pele negra a uma sujeira que devia ser limpa.
A pesquisadora, que é branca de origem judaica, ressalta nas primeiras páginas que o conceito de branquitude "não funciona em absoluto como categoria de acusação, questão moral ou normativa". É analisado, sim, como fenômeno histórico, vivido por um grupo independentemente de sua consciência.
Parafraseando Sueli Carneiro, nem toda pessoa branca assina o pacto da branquitude, que garante privilégios numa sociedade racista, mas toda pessoa branca se beneficia dele, sabendo ou não.
Schwarcz lembra o manifesto da Coalizão Negra por Direitos que afirmou, num texto de 2020, que no Brasil não haverá democracia enquanto houver racismo. É preciso parar de esperar que os outros resolvam enigmas que são nossos, diz ela.
"Cada um pratica a cidadania de onde pode. Não fui sempre, mas me transformei já há um bom tempo numa grande defensora de cotas e políticas de ação afirmativa, que busco introduzir nos lugares onde estou. Na Universidade de São Paulo, as cotas fizeram uma diferença muito grande para o bem."
Se a professora está acostumada a circular na Cidade Universitária, agora tem se aclimatado à Academia Brasileira de Letras —outro espaço sempre dominado pela branquitude. As exceções hoje, entre as 40 cadeiras da casa, são Domício Proença Filho, Gilberto Gil e, agora, Ailton Krenak.
O Brasil é um país com poucas instituições tão vetustas, do começo da República, então vale a pena fortalecer. Mas esse fortalecimento passa pela pluralidade, e tem havido muitos acenos nesse sentido" Lilia Schwarcz, antropóloga
Foi algo que Schwarcz abordou em seu discurso de posse, em junho. "Lima Barreto tentou três vezes entrar na Academia e desistiu. Depois, dois de seus biógrafos, Francisco de Assis Barbosa e eu mesma, aqui estamos. Penso que não será coincidência sermos brancos."
"Pretendo batalhar por mais inclusão", afirma ela. "O Brasil é um país com poucas instituições tão vetustas, do começo da República, então vale a pena fortalecer. Mas esse fortalecimento passa pela pluralidade, e tem havido muitos acenos nesse sentido."
Ou seja, se o branco ainda é a cor predominante nos quadros das instituições, como foi nas telas das galerias, a ideia é que se torne apenas mais um tom no mosaico que sempre compôs o Brasil.
IMAGENS DA BRANQUITUDE - A PRESENÇA DA AUSÊNCIA
- Preço R$ 99,90 (432 págs.); R$ 44,90 (ebook)
- Autoria Lilia Moritz Schwarcz
- Editora Companhia das Letras