Nas suas memórias do cárcere, o cantor Caetano Veloso, hoje com 82 anos, conserva nítido confronto com agente repressivo que se dizia treinado nos Estados Unidos. O meganha, como prova de sua suposta cultura livresca, mencionava o psicanalista Sigmund Freud e o filósofo Herbert Marcuse, dois intelectuais fundamentais para o pensamento no século 20.
Caetano puxou 54 dias de cana. O cabelo foi cortado, como se quisessem fazê-lo soldado. A música que compunha era “subversiva e desvirilizante”, para usar descrição encontrada em documento do Arquivo Nacional descoberto pelo historiador Lucas Pedretti, em 2020.
Para a ensaísta Márcia Fráguas, é significativo o fato de o artista ter passado por violências silenciosas no xadrez. “Isso demonstra que para o regime, o controle dos corpos e práticas, a fim de manter a moral vigente, fazia parte do ideário do país desejado pelos militares”, aponta a autora, no livro “It’s a Long Way – O exílio em Caetano Veloso”.
Em 219 páginas, a pesquisadora repassa exílio londrino investigando três discos: “Caetano Veloso” (1969), “Caetano Veloso” (1971), “Transa” (1972). A prosa reapresenta como novidade aquilo a que público já não mais aguenta ouvir. À medida que o texto avança, a historiadora disseca aspectos discursivos e musicais desses preciosos registros fonográficos.
Márcia inicia “It’s a Long Way” se recordando de artigo escrito por Caetano para o “The New York Times”, na ocasião em que transcorria-se segundo turno das eleições presidenciais brasileiras, em 2018. O cantor, diz a historiadora, evoca a permanência dos acontecimentos de 1969. Dessa vez, rondavam a vida política do país, como um pesadelo.
Um ano antes, em 1968, os tropicalistas entenderam ser importante a aparição pública visualmente performática. “Dois eventos marcaram o ápice dessas intervenções, que resultariam na prisão de Gilberto Gil e Caetano Veloso”, detalha Márcia, dizendo que a Boate Sucata, no Rio de Janeiro, onde ocorrera um dos shows, foi lacrada pelos militares após Caetano por lá se apresentar e ter cantado o Hino Nacional “em ritmo de tropicália”.
Assim que foram soltos, passados aqueles intermináveis dias no inferno prisional e cientes de que a coisa em termos políticos iria piorar ainda mais, Caetano e Gil foram submetidos ao cárcere domiciliar. Os artistas negociaram, durante o tempo em que estiveram confinados em suas casas, os termos do exílio. Queriam apenas autorização para levantar uma grana.
Segundo Márcia, o show registrado no disco “Barra 69” nasceu de cachola militar. O coronel Luiz Arthur, tão logo os tropicalistas souberam do exílio forçado, quis saber como os artistas arcariam com custos da viagem, pois lhes havia sido roubado o direito ao trabalho. Anos depois, Gil descreveria o episódio do algoz se colocando no lugar da vítima como maluquice.
Diretor da gravadora Philips, André Midani mandou a Salvador o diretor de produção Manoel Barenbein. Entre abril e maio de 1969, com participação especial de Gil, Caetano reuniu um timaço: Wilson das Neves na bateria, Sérgio Barroso no contrabaixo e Chiquinho de Moraes nos teclados. Lanny Gordin, considerado pelo produtor Rogério Duprat o maior guitarrista brasileiro, trouxe eletricidade de Jimi Hendrix à atmosfera dessa obra.
Márcia vê, em “Caetano Veloso”, de 1969, as canções delineando o exílio e seus movimentos díspares, entre som e silêncio, a alegria por estar vivo e o luto pela ausência, ao longo de 1969-1972. “Esse arco se inicia com a prisão em 1969 e a produção do disco no mesmo ano, a adaptação ao exílio, no álbum de 1971, e a preparação para a volta, em 1972”, observa.
Produtor
Em Londres, Caetano conheceu o produtor Ralph Mace, figura ilustre no pop londrino a ponto de ter trabalhado com David Bowie. O brasileiro, por sua vez, pirava mesmo quando assistia Mick Jagger e seu “clima de transformação do mundo em comunhão com a plateia” nos shows dos Rolling Stones. “Bowie esboçava uma estilização intencional que, no entanto, era, aos meus olhos, pouco rigorosa”, pontuou, conforme o livro “It’s a Long Way”.
Sob as lentes do fotógrafo Johnny Clamp, Caetano ressurge na capa do primeiro elepê que gravou em Londres com cabelos longos e barba comprida. A obra evidencia a melancolia bluesy, comum à psicodélica cena londrina do período. Mas, gravado em inglês, denota sobretudo tristeza pelo cantor se perceber impedido de cantar em sua língua pátria.
Logo no ano seguinte, em 1972, o cultuado “Transa” traz o compositor brasileiro flanando por Portobello Road. O sujeito da canção, segundo Márcia, desce as ruas do bairro ao som de reggae. Já não há mais a voz poética triste dos discos antecessores. Caetano sabia que o sonho havia acabado. A nova revolução viria em 1973 com “Catch a Fire”, de Bob Marley.
IT´S A LONG WAY
Márcia Fráguas
Garota FM
219 páginas
R$ 79,00
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