Diante do anjo pornográfico, Clarice Lispector se ajeita na cadeira para iniciar o diálogo possível. Nelson Rodrigues, gênio ou louco?, está nervoso. Sairia correndo, se pudesse. Mas fica e, se ela lhe perguntar orientação política, dirá que não é nem de esquerda ou direita.
Segundo o livro “Clarice Lispector Entrevista”, que acaba de sair pela editora Rocco, Nelson confessou ter gostado “profundamente” de conceder entrevista à escritora. “O que conta na vida são os momentos confessionais”, reconheceu o autor de “Perdoa-me Por Me Traíres”.
Vale a apreciação. Afinal de contas, a pesquisadora Claire Williams, especialista em Clarice Lispector, seleciona 83 entrevistas que a escritora e jornalista produziu para as revistas “Manchete” (1968-69) e “Fatos & Fotos: Gente” (1976-77), além do livro “De Corpo Inteiro” (1975). São textos que revelam uma maneira original e radical de conduzir esses bate-papos.
Para a estudiosa, embora possam ter valor literário modesto em comparação com romances e contos, as entrevistas — inéditas para parte considerável dos leitores — desnudam traços reveladores, principalmente se entendidas por perspectiva histórica, biográfica e artística.
Williams considera Clarice jornalista prolífica. Foi uma das primeiras mulheres a pisar numa redação no Brasil. Dos anos 1940 a 1970, nem sempre por preferência e sim por necessidade financeira, a escritora publicou incontáveis entrevistas na imprensa. “A entrevista me dá mais prazer do que a crônica, porque não fico falando sozinha: ouço também”, dizia.
Seus primeiros diálogos foram publicados entre 1940 e 1941, época na qual ainda cursava direito. Na fase debutante da carreira, colaborou com a revista “Vamos Ler!”, que circulava em território brasileiro. Era uma publicação aprovada pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), órgão criado pelo ditador Getúlio Vargas para controlar a imprensa.
Em seguida, conquistou emprego na Agência Nacional, ligada ao DIP, e obteve a primeira credencial de imprensa. Nos jornais varguistas, entrevistou estudantes, professores, generais e ministros. Parte desse material saia sem assinatura ou aparecia apenas “A Reportagem”. Na “Manchete”, cujo dono era o empresário Adolpho Bloch, publicou grandes diálogos.
Como a literatura não poderia ser principal fonte de renda, Clarice se desdobrava em múltiplas personas. E sempre, claro, unia-se ao texto. O que não lhe tornava imune às dúvidas acerca do trabalho jornalístico. Para a escritora, cedo ou tarde, esse ofício interferiria na arte, sobretudo porque percebia “desgaste” causado pelo cotidiano estafante.
Sabe-se que Clarice despia a alma humana. Amiga da palavra, acessava subjetividade de seus entrevistados. Era uma repórter curiosa, como é preciso ser para exercer esse ofício. Ao técnico Mario Jorge Lobo Zagallo, atrasado para o treino, inquiriu: “O que é o amor, Zagallo?” Resignado, ele se calou e, absorto, respondeu: “É um sentimento recíproco.”
Seja para a primeira-dama Sarah Kubitschek ou ao escritor católico Alceu Amoroso Lima, a faceta jornalística da escritora ucrano-brasileira dispensava bom mocismo. Perguntava o que lhe vinha à cabeça, sem preocupar-se com normas ou em esconder insatisfação de conversar com certas pessoas. Na maioria das vezes, todavia, Clarice se divertia em seu labor.
Estilo único
No diálogo com o cantor Chico Buarque, soltou: “Você também tem o ar de quem é facilmente enganado: é verdade que você é crédulo ou está de olhos abertos para os charlatões?” Chico abriu o jogo: “Não é que eu seja crédulo, sou é muito preguiçoso.”
Desafiou o maestro Tom Jobim e o psicanalista Hélio Pellegrino a lhe escreverem, de improviso, um poema. Os dois — e como dizer não a Clarice? — o fizeram. Assim como o amigo Millôr Fernandes arquitetou um haicai na hora e o poeta Vinícius de Moraes, galanteador contumaz, destacou a beleza da entrevistadora, que ficara envaidecida.
Mas um dia vazio de fatos, escreve em conto, lhe dava oportunidade para si mesma. Ah, suspirava, “vou ligar o rádio e me ouvir os outros tocando música”. “É isso mesmo: música é tão importante para mim que, quando a ouço, é como se eu fosse o intérprete. Tenho através dos outros uma voz belíssima. E não existe ninguém que me toque a flauta-doce.”
Embora fosse capaz de conduzir entrevista com quem quer que fosse, Clarice se aliviava quando percebia a conversa mudando de rumo. Ela a guiava para as artes ou para questões metafísicas. Três perguntas viraram sua marca jornalística: “O que é a coisa mais importante do mundo?”, “O que é mais importante para você como indivíduo?” e “O que é o amor?”
Não é de se surpreender, portanto, a perplexidade de certos entrevistados. Filha do ex-presidente Getúlio, Alzira Vargas brincou com o ofício indagatório de Clarice. “Sei que estás aqui em missão de inquisidor”, constatou. A jornalista, por sua vez, compreendia seu papel ali: era porta-voz do público. Os diálogos clariceanos são uma leitura prazerosa.
CLARICE
ENTREVISTA
Preço: R$ 109,90
Editora: Rocco
Páginas: 420