Cazuza, o maior poeta de sua geração, vocalizou sonhos e desesperanças brasileiros. Descortinou também, se entendesse necessário, toda essa gente careta e covarde. Como Lou Reed, walking on the wild side, varava noites rindo dos loucos, dos sábios e dos mendigos.
Tal qual Jack Kerouac, um dos escritores que lhe fascinou, via sociedade por perspectiva rebelde. Agarrava-se às mentiras sinceras. Ferino e desajustado, punha seu arsenal poético para atacar hipocrisias burguesas, que, como canta numa de suas canções, fedem. Era um beatnik carioquíssimo, maldito, cantando o blues com bumbo na praça.
É o que mostra livro “Meu Lance é Poesia”, editado pela Martins Fontes. São 238 poemas, escritos entre 1975 e 1989 — de manuscritos e datiloscritos às conhecidas canções grudadas em nossos ouvidos graças ao apuro estético-discursivo do texto cazuzeano. Há ainda 27 obras inéditas garimpadas no importante latifúndio documental do Arquivo Viva Cazuza.
Organizado por Lucinha Araújo (mãe) e Ramon Nunes Mello (fã), “Meu Lance é Poesia” apresenta segredos de liquidificador desse autor de obra atemporal em ordem cronológica, de modo a acompanharmos sua maturação literária. A arte da palavra, sedutora, mudou vida do artista quando criança, época na qual escrevera seus primeiros textos.
Aos 14 anos, seguia o poeta Carlos Drummond de Andrade por Copacabana. “Me sentia importante acompanhando os passos daquele Poeta Maior pelas ruas à tarde”, revelou, anos depois, em entrevista. Tinha, acreditava, referências literárias “completamente loucas”.
“Lia tudo de uma vez misturando Jack Kerouac com Nelson Rodrigues, William Blake com Augusto dos Anjos, Allen Ginsberg com Cassandra Rios, Rimbaud com Fernando Pessoa”, rememorou o poeta, que se deslumbrava com prosa existencialista de Clarice Lispector. Dois livros da autora brasileira lhe arrebataram: “A Descoberta do Mundo” e “Água-Viva”.
Quando a extinta Brasiliense editara nos anos 80 obras de Jack Kerouac, Allen Ginsberg e William S. Burroughs, Cazuza ficou pirado. “Eu fazia algo ligado a eles e não sabia. Penso que os anos 50 têm muito a ver com os anos 80. Era época de repressão que se soltou lá pela década de 60”, aludiu o poeta, que homenageia os malditos em “Só as Mães São Felizes”.
Mas foi à loucura mesmo quando descobrira blues-rock de Janis Joplin e dos Stones, estilo ao qual associara-se nos elepês “Barão Vermelho”, de 82, “Barão Vermelho 2”, 83, e “Maior Abandonado”, 84. Identificamos nesses discos linguagem carregada no coloquialismo, deboche e sensualidade, características observadas na obra de Chacal, por exemplo.
O pai, João Araújo, fundou a gravadora Som Livre, em 1969, e a mãe, Lucinha Araújo, gravou três discos entre 78 e 82. À noite, o pequeno Cazuza acordava para beber água e, de repente, via na sala de sua casa a santíssima trindade tropicalista: Gil, Caetano e Gal. Ou papeava com os Novos Baianos. Elis Regina o pegou no colo, conforme Lucinha.
Se roquenrol amenizara a dor-de-cotovelo da música popular brasileira, com aquela desesperança amorosa vocalizada pela rouquidão de Maysa e pela cornitude cantada por Lupicínio Rodrigues, Cazuza se uniu à irmã ideológica Rita Lee. Dizia que o importante não era cantar a perda, mas o amor — pois, conforme a diva Dalva de Oliveira, amor é amor.
“Não tem meias-palavras. Fala coisas como ‘meu prazer agora é um risco de vida’ ou ‘ideologia, eu quero uma pra viver’. Vai direto na veia.” Nico Rezende, arranjador
Lágrimas
Enxugando as lágrimas e voltando pra sacanagem (muito melhor, Cazuza, a gente sabe), “Meu Lance é Poesia” traz notas explicativas a respeito dos poemas. O crítico literário Silviano Santiago, amigo do guru Ezequiel Neves, contextualiza a produção poética do artista, enquanto a professora Eliane Robert Moraes situa traços erotizantes nas criações.
No palco, o artista sentia o sexo aflorado no olho das pessoas. Mostrava algo bonito, estimulante, como se estivesse transando com a plateia: dicção modificada, prosódia pop, tesão! Ao separar-se do Barão, contudo, somos testemunhas daquela alma exagerada que se jogava aos nossos pés, numa referência à composição-símbolo do primeiro disco solo.
“Exagerado”, o disco produzido por Ezequiel Neves e Nico Rezende, reafirma a identidade cazuzeana. Nico conta ao Diário da Manhã que esse artista “exageradinho” foi um presente que a vida lhe dera, pois o conhecera durante trilha sonora do filme “Bete Balanço”, dirigido pelo cineasta Lael Rodrigues, em 84. “Ele me procurou quando saiu do Barão, em 85, porque queria fazer um disco de rock’n’roll e de música brasileira”, lembra o arranjador.
Nico explica a ideia de Cazuza. “Era uma coisa meio Lupicínio Rodrigues”, define. “A gente fez um disco lindo, que é o ‘Exagerado’. Chamei os músicos, assinei os arranjos”, relata, encantado com objetividade de Cazuza. “Não tem meias-palavras. Fala coisas como ‘meu prazer agora é um risco de vida’ ou ‘ideologia, eu quero uma pra viver’. Vai direto na veia.”
Como “Exagerado” iniciava voo solo de Cazuza, “Só Se For a Dois” volta olhar para a relação amorosa. Já “Ideologia”, publicado em 88, traz ecletismo musical do poeta. As canções, aqui, refletem sobre geração em que estava inserido, uma vez que seus heróis estavam mortos e seus inimigos assaltavam o poder. “O Tempo Não Para”, por sua vez, eterniza o pensamento desse artista atemporal, enquanto “Burguesia” evoca a força da arte.
Ainda lançaria, de forma póstuma, o disco “Por Aí”, com canções que não entraram no disco antecessor. Símbolo inquestionável da luta contra a AIDS, Cazuza jamais morrerá. Tal qual Kerouac, Ginsberg e Rimbaud, viverá na força de sua poesia. E também, agora, nos poemas de “Meu Lance é Poesia” e na fotobiografia “Protegi Teu Nome por Amor”. Agenor de Miranda Araújo Neto, que prendia o choro, tem seu nome protegido pelo amor.
MEU LANCE É POESIA
Ramon Nunes Mello, org
320 páginas
Martins Fontes
R$ 99,90