Dentro de dez dias, o rapaz de olhos azuis terá 80 anos. Provavelmente ninguém ficará surpreso com o possível silêncio de Chico Buarque, artista definidor da cultura brasileira nas últimas seis décadas. Ou achará estranha sua tentativa de evitar assédio midiático. Mas sorrirá se ele, Chico, ironizar a idolatria que criamos em torno de si nesses anos.
Vez ou outra, quebrando essas regrinhas capazes de assegurar-lhe a privacidade, Chico concede entrevistas, mas só fala com jornalistas de confiança. De confiança, por favor, entenda repórteres que evitam a polêmica gratuita, as intrigas pretéritas entre velhos camaradas, a futilidade das fofocas. Como se diz em certas ruas de Goiânia, ele é “de boa”.
Tão “de boa” que até norteou nosso emburrecido país nos anos 60 e 70 com a refinada musicalidade embebida na bossa nova de Tom Jobim. Desde a redemocratização, tem dispensado qualquer heroísmo militante a respeito da ditadura. Daí é possível concluir que não parecem ser descartáveis os livros lançados perto da data celebrativa: 19 de junho.
Três obras têm Chico como foco. “Trocando em Miúdos: Seis Vezes Chico Buarque” (Record, R$ 79,90), do jornalista Tom Cardoso, perfila o artista cujo pai era paulista e avô, já sabemos, pernambucano. As outras publicações são “O Que Não Tem Censura Nem Nunca Terá: Chico Buarque e a Repressão Artística na Ditadura Militar” (L&PM, R$ 54,90), do jornalista Márcio Pinheiro, e “Chico Buarque em 80 Canções” (34, R$ 87,00), de André Simões.
“Trocando em Miúdos” compila embates entre o artista e os censores a serviço do governo ditatorial, instaurado em 64 e do qual Chico foi vítima. O livro se estrutura em seis eixos: política, literatura, fama, polêmicas, censura e futebol. Essa fórmula foi utilizada por Tom em “Outras Palavras: Seis Vezes Caetano Veloso”, também da Record.
Repórter marinado no sabor do jornalismo, o autor ampara o texto numa esforçada pesquisa documental. A narrativa caminha pela estrada incerta dos verbos, como se fosse um samba delicioso – ou de uma nota só. Flui bem. Flui tão bem que desgrudar os olhos das palavras se faz algo impensável, diria até mesmo impraticável, mas – sem dúvida – inegociável.
“Você é o compositor que canta com seu violão, protegido. O tropicalismo quebrou isso e me deixou um pouco atordoado Chico Buarque, cantor e compositor
Nascido em 19 de junho de 1944, Francisco Buarque de Hollanda gostou da bossa nova porque havia no estilo de Tom e João Gilberto uma tal “estética da timidez”. “Você é o compositor que canta com seu violão, protegido. O tropicalismo quebrou isso e me deixou um pouco atordoado”, afirma Chico, conforme texto assinado pelo crítico Tárik de Souza.
Tarik nos apresenta “Trocando em Miúdos”. Referência na crítica musical patropi, o escriba define Chico como “polímata de gêneros, linguagens e posturas estéticas”. Para ele, o cantor passou a ser considerado pilar da canção popular quando houvera o bafafá ocasionado por “A Banda”, em 1966. Enfiaram-lhe, então, a pecha de bom moço – em grande medida graças aos versos “o meu amor me chamou/ pra ver a banda passar/ cantando coisas de amor”.
Anos antes, todavia, Chico deixara o pai pra lá de enfezado. Era ninguém menos que o historiador Sérgio Buarque de Hollanda. Conforme relata Tom, aos 14 anos, Chico e outros alunos do Colégio Santa Cruz participaram do movimento ultramontano. “Seria um dos embriões do TFP (Tradição, Família e Propriedade), organização fundada dois anos depois pelo líder católico Plínio Corrêa de Oliveira”, relata o jornalista, no capítulo “Política”.
A TFP, inclusive, organizaria a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 64, com papel importante no golpe dado naquele ano pelos militares. No entanto, de acordo com Tom, Chico declarou à imprensa que o envolvimento se dera apenas no plano religioso. “Não tinha nada de político ou ideológico”, defendeu-se o cantor, que chegara a ser elogiado pelo dramaturgo Nelson Rodrigues – um reacionário vocacionado – no jornal “O Globo”.
Com o delírio anticomunista matando a razão, Chico armou-se com papel e caneta. Desovou duas canções: “Pedro Pedreiro” e “Marcha para um Dia de Sol”. Foi o suficiente para lhe compararem a Geraldo Vandré. E aumentaram, como uma espécie de efeito colateral, as críticas da esquerda ao artista. De saco cheio da porra toda, só desencanou de não ir à Passeata dos Cem Mil quando dimensionou as consequências que isso poderia lhe causar.
Comparecendo à manifestação, enveredando pelo teatro com “Roda Viva” e fazendo músicas cada vez mais corajosas, o cantor despertou a fúria dos militares. Avisaram-lhe que “enfiariam um ferro quente na vagina daquela sua amiga Nara Leão”, como reação a uma entrevista na qual Nara apenas dizia que o Exército brasileiro “não servia para nada”.
Exílio e censura
Chico entendeu o recado. Temeroso, dirigiu-se para o autoexílio. Na Itália, onde morara entre 69 e 70, conviveu com o jogador Mané Garrincha e a cantora Elza Soares, também exiliados – Ruy Castro, conceituado biógrafo, narra o episódio em detalhes em “Estrela Solitária”, publicado pela Companhia das Letras nos anos 90. Chico e Marieta Severo, então sua mulher, retornaram ao Brasil fazendo barulho. Era conselho de Vinícius de Moraes.
Sim, uma volta sem alarde poderia ter fim trágico. Ou, mais comum à época, “misterioso”. Não bastasse a situação brasileira, os caminhos do artista e da ditadura se tornariam cada vez mais estreitos, conforme conta o repórter Márcio Pinheiro em “O Que Não Tem Censura Nem Nunca Terá” o segundo lançamento que possui Chico como personagem. “Chico Buarque foi o maior símbolo dessa perseguição cultural”, afirma o jornalista, no livro.
A partir de então, Chico não teve descanso. Foi perseguido, vetado, exilado, cortado e até, de forma temporária, calado Chico Buarque, cantor e compositor
“A partir de então, Chico não teve descanso. Foi perseguido, vetado, exilado, cortado e até, de forma temporária, calado”, anota Márcio. O pesquisador declara que, intelectualizado e bem-preparado, com consistente formação humana, Chico virou “o pesadelo da Censura”, a ponto de inventar o pseudônimo Julinho da Adelaide – autor do hit-galhofeiro “Jorge Maravilha”. “Você não gosta de mim, mas sua filha gosta”, diz a sugestiva letra.
De “Pedro Pedreiro” a “Que Tal um Samba”, o pesquisador André Simões analisa 80 canções escritas por Chico na obra “Chico Buarque em 80 Canções”. André considera não apenas a interação lírico-musical do cantor, mas também os arranjos, a interpretação e o contexto histórico. Não é preciso tanta reflexão para perceber as músicas do artista como belas.