Uma maneira fácil de descrever “Entrevista com o Demônio”, uma das principais estreias desta quinta, 4, nos cinemas, é: “O Exorcista” em um programa de entrevistas, daqueles transmitidos durante a madrugada. Porém, se engana aquele que pensa que o filme de Colin e Cameron Cairnes se limita a ser somente isso. Estruturado como um falso documentário, o longa simula a estética visual da televisão da década de 1970 para realizar uma análise crítica sobre as distâncias drásticas que alguém pode percorrer para alcançar a fama, além de entregar vários sustos no processo.
O terror, estrelado por David Dastmalchian (‘O Esquadrão Suicida’), conta a história de um apresentador de televisão, Jack Delroy, que sofre tanto com a perda da esposa pelo câncer quanto com a queda de audiência vertiginosa em seu programa de entrevistas. Para reverter a segunda situação, Delroy elabora uma edição especial do programa comemorando o Dia das Bruxas, com um dos convidados sendo uma garota de 13 anos aparentemente possuída por uma entidade maligna, com a qual ele tenta se comunicar durante a transmissão.
Em 2023, “Entrevista com o Demônio” foi um sucesso estrondoso em sua passagem pelos principais festivais de filmes de gênero nos EUA e na Europa, como o South by Southwest e o Fantasia Film Festival em território americano, e o BFI London Film Festival no Reino Unido. A obra causou um impacto tão tremendo que rendeu o apoio de duas das maiores vozes do terror atualmente: o autor Stephen King (‘It: A Coisa’) e o diretor Mike Flanagan (‘A Maldição da Residência Hill’).
King postou no X (ex-Twitter) em março de 2023: “É absolutamente brilhante. Não consegui tirar os olhos [do filme].” Já Flanagan, na mesma rede social, escreveu, em novembro: “David Dastmalchian carrega a história com uma performance fantástica e Colin e Cameron Cairnes constroem uma atmosfera sofisticada e cheia de nuances no decorrer do longa. O melhor terror de sua espécie desde ‘Vigília Paranormal’ [filme britânico de 1992, também estruturado como um falso documentário de um evento sobrenatural].”
Curiosidades
Os irmãos Colin e Cameron Cairnes, responsáveis pela direção, roteiro e montagem de “Entrevista com o Demônio”, sempre foram fascinados com o formato dos programas de entrevista dos anos 1970. De acordo com a “Variety”, eles dizem: “Nessa época, havia algo levemente perigoso sobre a programação noturna de televisão. Os programas de entrevista, em particular, eram uma janela para um mundo adulto estranho. Nós pensamos que a combinação desta atmosfera energética ao vivo com o sobrenatural resultaria em uma experiência assustadoramente única”.
Além disso, o longa tem um de seus aspectos mais perturbadores fundamentado em algo misterioso da vida real. Na trama, Delroy faz parte de um clube de elite restrito conhecido como “o Grove”, cujo símbolo é uma coruja. Os diretores nunca se manifestaram em respeito a isso, mas é altamente possível que eles tenham se inspirado no Bohemian Grove, uma sociedade de homens fundada em 1878 que se reúne anualmente em um acampamento restrito de 1.100 hectares na Califórnia, que também tem como símbolo uma coruja. Um encontro notável foi em 1942, onde membros do Projeto Manhattan, incluindo J. Robert Oppenheimer, se encontraram para discutir o desenvolvimento da bomba atômica.
Porém, a sociedade é repleta de teorias da conspiração, que relatam que o Bohemian Grove é responsável por realizar rituais satânicos em suas reuniões. Um dos eventos mais tradicionais do grupo é a Cremação do Cuidado, uma peça onde os membros se reúnem em volta de uma estátua gigantesca de uma coruja para, alegadamente, representar a salvação das árvores no local pelo clube. De acordo com o radialista Alex Jones, que se infiltrou no Grove em 2000, a Cremação é “uma cerimônia religiosa misteriosa, antiga, demoníaca e babilônica”.
Outros relatos, como os do escritor Philip Weiss em 1989, complementam o caráter oculto da cerimônia. De acordo com Weiss, os membros vestiam robes encapuzados coloridos, repetindo o lema da sociedade: “Aranhas feias, não fiqueis perto”, uma citação da peça “Sonho de Uma Noite de Verão”, de William Shakespeare. Além disso, a estátua da coruja “falava” com os homens presentes através de um gravador com a voz do jornalista Walter Cronkite, ex-membro do Bohemian Grove, com seus diálogos ecoando cantos antigos relacionados a seitas.
É bem interessante ver como os irmãos Cairnes incorporam essas temáticas e teorias da conspiração na narrativa de “Entrevista com o Demônio”, realizando uma verdadeira sátira dos apresentadores da época, como Johnny Carson, e analisando as distâncias que uma pessoa é capaz de percorrer para alcançar uma fama estrondosa. Os diretores e roteiristas vão encaixando todas as peças e amarrando todas as pontas soltas, culminando em uma conclusão reveladora que certamente surpreenderá o espectador.
Inclusive, a tentativa de “Entrevista com o Demônio” de retratar as cerimônias da sociedade secreta gerou controvérsia nas redes sociais pelo uso de imagens geradas por inteligência artificial (IA). Respondendo à polêmica, os cineastas explicaram à Variety: “Juntamente com nossa incrível equipe gráfica de direção de arte, os quais trabalharam duro para dar a este filme a estética dos anos 1970 que tínhamos imaginado, nós experimentamos com IA em três imagens estáticas, que foram editadas e incluídas brevemente na projeção.” O diretor Mike Flanagan, que elogiou o longa, defendeu os Cairnes no Letterboxd, reforçando a qualidade inegável do trabalho dos irmãos, independentemente das tecnologias utilizadas.
Entrevista com o Demônio
1h26, duração
Colin Cairnes, direção
Ian Bliss, ator
Laura Gordon, atriz
David Dastmalchian, ator
Disponível nos cinemas
No Cinema com João Pedro - [email protected]