
Diante dos olhos e ouvidos absortos, a guitarra pilotada por Lúcio Maia, 53, trafegará neste domingo, 9, por um campo harmônico nassoviano. O músico recifense se apresentará no Shiva Alt Bar, Setor Oeste, a partir das 20h, com o projeto “Lúcio Maia Trio”.
Conselho: note as palhetadas rasgadas, as distorções agressivas, o wah-wah alvissareiro. No início, o instrumento até era de quinta mão. O tecido social, pudera, se deteriorou naqueles tempos. Restava nos anos 1990 espírito inventivo, do it yourself, esse lance da brodagem.
Lúcio Maia enfiou no braço da guitarra os trastes, muitos buracos expostos ali, e se meteu a explorar musicalmente sua própria precariedade material. Os acordes eletrificados mas dançantes convergem com o maracatu, a embolada, num toque afro-brasileiro. Recife estacionado na mesmice, a quarta pior cidade do mundo, incrustada na lama e no caos.
Maia se supera disco a disco. Com a Nação Zumbi, banda da qual foi integrante até 2020, gravou pelo menos dez álbuns. Sua guitarra se faz ouvir altiva nas obras-primas “Da Lama ao Caos” (1994) e “Afrociberdelia” (1996). Nos anos 2000, jogou-se ainda no projeto Maquinado, para cercar-se de percussão e programação, com samplers, teclados e baixo.
Em 2019, já instrumentista consagrado, publicou nas plataformas disco instrumental em que se deixava seduzir pela malemolência da latinidade. “Enrolando Salsa”, a primeira faixa, põe a guitarra de assinatura própria do músico para dançar os ritmos caribenhos. Ou seja, há uma abundância entorpecedora de sotaques musicais nessa torre de babel sonora.
“Preciso sempre me colocar em risco, me auto-avaliar como artista, criar coisas novas”, afirmou o guitarrista à época, ao ser incitado pelo jornal “Folha de Pernambuco” a falar de suas experimentações musicais. “Esse trabalho é mais uma intervenção artística minha, uma maneira de não ficar parado a viver na zona de conforto da Nação Zumbi.”
Como que passeando pelas veias abertas da América Latina, Maia conduz no disco “Lúcio Maia” o Nirvana pelos caminhos da latinidade. A música “Lithium”, gravada no elepê Nevermind” (1992), fecha a obra. Ao mesmo tempo, revisita um clássico que lhe passou batido nos anos 1990, quando seus interesses se voltaram ao rap e não aos caras de Seattle.
Só foi se interessar por essas bandas cujos membros usavam camisa flanela, calça rasgada e tocavam alto depois da febre grunge. “Foi uma banda que todo mundo pirou tanto e eu não conhecia, aí passei a procurar saber só depois da morte do Kurt Cobain, e aí que eu entendi a banda que eles eram. Achei muito foda”, rememorou à revista do clube do disco Noize.
“Em 2016, eu fui ver o documentário da Netflix e passei a ouvir de novo e pirei de novo. E aí, até porque a gente estava precisando de músicas pro show, eu fiz alguns covers, e essa de ‘Lithium’ foi uma que ficou super bacana, o andamento é muito parecido do original, então foi fácil de transpor pra uma levada diferente. Eu toco no tom original”, explica Maia.
Na linha evolutiva da guitarra cabocla, o músico sucede Lanny Gordin, Pepeu Gomes, Luiz Carlini, Roberto Frejat e Edgard Scandurra. Brasileiríssimo como uma certa tábua de esmeralda de Jorge Ben, o instrumentista desenvolveu sua linguagem nas seis cordas. Remete-nos ao sentimento hendrixiano, à sutileza santaniana, ao balanço funky-soul.
Sede de informação
O músico, como se percebe, expressa uma sede insaciável pela informação. John Coltrane e seu saxofone do amor supremo o pegaram: colossal. Bob Marley e sua reggae music o enlouqueceram: imensurável. Jimi Hendrix e seu “Axis: Bold as Love” o despirocaram: espantoso, estrepitoso. Wes Montgomery e seus arpejos o desconcertaram: soberbo.
Para Maia, Tom Morello, conhecido pela sua guitarra possante no metal libertário do Rage Against the Machine, tem importância na evolução desse instrumento elétrico semelhante a de Hendrix. A sacada, acredita o mangueboy, é fazer as seis cordas elétricas caminharem para frente, de modo a desapegar-se de passadismos enferrujados e técnicas castradoras.
Embora passe por seus perrengues, a guitarra se reinventa. “Vim de uma época em que as bandas que eu gostava eram dos anos 1970 e 80 e aquilo ali era apinhado de guitarra. Metal eu gostei muito, gosto até hoje, e tem muita guitarra. Nos anos 1990, veio aquele período dos grunges, e tinha muito rock bombando por trás, enquanto a música eletrônica estava começando a estourar mundialmente, e ali já não tinha mais guitarra”, analisa à “Noize”.
Mas o instrumento, crê Maia, segue fundamental. “A guitarra não começou com a guitarra do Leo Fender, começou muito tempo antes. É uma coisa muito antiga. E que ela tá sendo reinventada é certeza. Já já vai aparecer aí um moleque fazendo alguma coisa incrível”, tranquiliza. Enquanto isso não chega, resta-nos Metá Metá, Bixiga 70 e, claro, Lúcio Maia.
LÚCIO MAIA TRIO
Domingo, 9, às 20h
Shiva Alt Bar
Ingressos a R$ 40