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Marcelo Rubens Paiva ocupa lugar nobre nas livrarias com sucesso de 'Ainda Estou Aqui'

Autor aparece há quatro semanas entre os mais vendidos com romance autobiográfico ‘Ainda Estou Aqui’. Entenda como obra do autor ajuda na compreensão do País

Escritor se caracteriza por prosa que mistura fatos da história brasileira com memórias de sua vida - Foto: Fiorenzo de Luca/ Veneza Escritor se caracteriza por prosa que mistura fatos da história brasileira com memórias de sua vida - Foto: Fiorenzo de Luca/ Veneza

Li Marcelo Rubens Paiva, fui com a cara, enlouqueci no estilo. Queria ler mais, precisava ler mais. Penso no que a jornalista Lígia Sanches escreveu em dezembro de 1982 na Ilustrada: seu texto é ágil, rápido, procurando linguagem moderna que inclui gírias e frases curtas.

Para o autor, a escrita é trampo solitário cheirando a cigarro e café. “Coisa contraditória, pois o escritor tem que falar da vida e é obrigado a ficar dentro de casa. Para mim foi uma terapia: eu queria falar de um cara normal com problemas, como outras pessoas”, disse à época.

Marcelo estava no auge da sexualidade, aos vinte anos, em uma época de liberdade. Curtia Sex Pistols. Punk explodia. Bebia com Renato Russo e Clemente, dos Inocentes. Gostava de namorar. Mas vivia numa sociedade machista, patriarcal. Muita opressão. Talvez pareça ofensivo desejar enfermeiras e fisioterapeutas. Sexualidade era tabu para lesionado medular.

Ouvia The Clash e seu disco “Sandinistas”, dava rolê nas boates Napalm e Carbono 14, onde conheceu Fernanda. Quando viu, estava apaixonado. “Trepar apaixonado é o momento a ser lembrado minutos antes da morte”, escreve, em “Meninos em Fúria”, suas memórias de escritor nos anos 1980, da cena noturna paulistana e da revolução estética causada pelo rock.

Certa vez, numa entrevista a um documentário, perguntaram-lhe qual momento mudara sua vida. Você errou se achava que tinha sido quando a ditadura assassinara seu pai, ou um quando um acidente violento o deixara cadeirante. Sua vida mudou mesmo quando o editor Caio Graco, da Brasiliense, perguntara por que não datilografava aquilo que lhe acontecia.

“Feliz Ano Velho” nasceu coloquial. Meio Jack Kerouac, parente de J. D Salinger, próximo a Charles Bukowski. Inspirava-se nos contos de Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, mas também trazia linguagem enxuta de Hemingway. Lia o cânone maior: Machado de Assis.

Em 1982, o Barão lançava seu primeiro disco, a Blitz estourava nas rádios, os Titãs davam seus primeiros passos e os Paralamas faziam seus shows iniciais. A Democracia Corinthiana peitava os militares no time mais popular de São Paulo. “Feliz Ano Velho” chegava às livrarias. Virou fenômeno literário, de cara. Marcelo Rubens Paiva era popstar da palavra.

Escrito em primeira pessoa, o romance narra acidente em que Marcelo bateu cabeça no fundo de um lago. Escutou zumbido no ouvido: piiiiiiiiiii. Não sentia as pernas. Amigos o tiraram da água, e médicos o examinaram. Diagnóstico: fratura de vértebra cervical. Medula comprimida. Passaria por cirurgia, unidade de terapia intensiva, internação longa pela frente.

O relato desses dias hospitalizado foi publicado na coleção de livros Cantadas Literárias, que lançou Reinaldo Moraes, acusado pela imprensa de “picaretagem estética”. Paulo Leminski, Ana Cristina Cesar, Chacal e Caio Fernando Abreu também tiveram suas obras editadas na Cantadas. Ninguém mais aguentava o discurso fracassado da velha esquerda.

Se você for listar as virtudes do livro do Marcelo, elas estão muito mais na linguagem. É justamente colocar em cena um personagem que é um cara que fuma maconha, trepa com as namoradas e não parece movido por uma ideologia muito determinada" Reinaldo Moraes, escritor

Segundo Reinaldo, autor de “Tanto Faz”, “Feliz Ano Velho” traduz o espírito de seu tempo. “Se você for listar as virtudes do livro do Marcelo, elas estão muito mais na linguagem. É justamente colocar em cena um personagem que é um cara que fuma maconha, trepa com as namoradas e não parece movido por uma ideologia muito determinada. É claro que ele quer descobrir quem matou o pai dele. Ele quer”, pontua à revista “Quatro Cinco Um”.

Durante anos, o sucesso não evitou que Marcelo Rubens Paiva causasse desconfiança. Duvidavam se teria gás para continuar, o que ele próprio duvidava e duvida até hoje, conforme revela na apresentação da edição que comemorou os 40 anos de “Feliz Ano Velho”, em 2022. Mas os livros foram sendo escritos. Virou dramaturgo, jornalista.

Nas últimas semanas, voltou a estar em evidência nas livrarias com “Ainda Estou Aqui”, obra que baseia o filme dirigido por Walter Salles. Dessa vez, o autor rememora sua infância. Sofreu, ali, o primeiro grande baque: pai desaparecido. O deputado federal Rubens Paiva, cassado no golpe de 1964, foi torturado pelos militares até morrer, em janeiro de 1971.


		Marcelo Rubens Paiva ocupa lugar nobre nas livrarias com sucesso de 'Ainda Estou Aqui'
Marcelo Rubens Paiva é autor de livro que originou longa-metragem "Ainda Estou Aqui". Foto: Fiorenzo de Luca/ Veneza


Evidências

“Por conta da Comissão da Verdade, tive elementos para escrever o livro ‘Ainda Estou Aqui’, e agora temos esse filme deslumbrante”, sentencia Marcelo, a quem foi negado por anos dizer em obra literária que o pai havia sido agredido e morto pelos militares. A Comissão Nacional da Verdade provou que Rubens Paiva não resistiu ao segundo dia de tortura.

Foi espancado, pisoteado na barriga e certamente esquartejado e enterrado na restinga de Marambaia (RJ), faixa de areia que tem 42 km sob guarda da Marinha Brasileira. Nascido em dezembro de 1929, Rubens Beyrodt Paiva se formou engenheiro civil pela Universidade Mackenzie. Quando invadiram sua casa para prendê-lo, ele lia jornais. Tinha cinco filhos.

No dia seguinte, 21 de janeiro, a matriarca, Eunice Paiva, e a irmã mais velha de Marcelo foram presas. Rubens Paiva, que o filho descreve como “democrata burguês”, suplicava por água. Dizia aos torturadores: “meu nome é Rubens Paiva, Rubens Paiva, Ru-be-ns Paaa…”

Retomaram no dia 21. Com a filha e a mulher encapuzadas, sentadas num banquinho. Será que ele viu vocês? Como ele reagiria?" Marcelo Rubens Paiva, escritor

Marcelo liga os pontos, em certa altura do livro. “Entendi por que minha mãe e irmã tinham sido presas um dia depois. E tomei um susto enorme”, começa. “Você sabe, mamãe, por que foram levadas ao DOI? Ele não falava nada. Foi torturado no dia 20. Nada. Retomaram no dia 21. Com a filha e a mulher encapuzadas, sentadas num banquinho. Será que ele viu vocês? Como ele reagiria? O que ele faria, para impedir que encostassem em vocês?”.

“Ainda Estou Aqui” expõe relação de Marcelo com sua mãe (“deve ter me dado uns quatro beijos na vida”) e fala da luta dela contra o Alzheimer, doença que a matou aos 89 anos, em 2018. Advogada de anônimos e famosos, “era prática, culta, sensata, magra, workaholic. Tudo o que não se quer de uma mãe”. “Falei no passado, reparou?”, aponta o autor. Mas “a acumulação do passado sobre o passado prossegue até o nosso fim”. Ainda estamos aqui.

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