A escritora Maria José Silveira escreveu o romance “Farejador de Águas” por dois motivos: seu amor pelo Cerrado, bioma em estado avançado de extinção, e a preocupação que sua destruição causará ao País. Goiana do pé rachado, a autora morou por aqui até a juventude. Nas férias, quando vinha de São Paulo a Goiânia de carro, mostrava aos filhos a diferença da paisagem, induzindo-os a olhar às árvores, analisá-las e admirá-las. Beleza natural comove.
Daí fazer todo sentido, por exemplo, Goiás aparecer nos romances publicados pela autora. Com lançamento marcado para amanhã, na Livraria Leitura, Goiânia Shopping, Maria José leva o leitor a uma viagem de quase cem anos capaz de despertar para o fato de humanidade e natureza serem uma coisa só. O futuro, diria o ambientalista Ailton Krenak, é ancestral. “Ele é tudo que já existia. Ele não é o que está lá em algum lugar, ele está aqui”, afirma o intelectual dos povos originários, na epígrafe do primeiro capítulo. A obra sai pela Instante.
O arco narrativo se estrutura em torno de Minino, garoto órfão criado por uma mulher indígena, nos anos 1920. Ele resolve abandonar a terra deixada pelos pais, em Goiás, para acompanhar a Coluna Prestes, movimento que abalou os alicerces da então jovem república. O rapaz, no entanto, possui um dom especial: mostra-se farejador de águas nas nascentes dos rios, o que o faz ter relevância no grupo e, com isso, começa a caminhar à frente da marcha.
Caso não ele, veja bem, quem irá sentir o cheiro dos jagunços escondidos, prontos para emboscadas? Numa dessas andanças, Minino sente necessidade de lutar por aquilo que acredita, como a paixão pela natureza e por Maria Branca, que passa a ser sua companheira de toda a vida. Findada a Coluna, volta para a casa, uma pequena propriedade - talvez não vença nenhuma luta, mas não será dado como vencido. Ainda que, anos depois, depare-se com uma notícia assombrosa, um tanto escabrosa, registra-se - ceifaram a democracia.
Era o golpe. Sim, os militares haviam destituído o presidente João Goulart, eleito em 1961. Ninguém sabia explicar direito: como seria possível “Uma Revolução Redentora” e por que as Forças Armadas iriam querer fazê-la? Zé tentava entender isso tudo e procurava encontrar alguma semelhança desses militares com aqueles do tenentismo. Instalava-se na cabeça dele ponto de interrogação e via-os como amigo de fazendeiros, gostava de Jango e desconfiava quando se falava em anarquia. Que anarquia é essa, se tudo está tranquilo?
Fatos históricos
Ao DM, na ocasião em que lançou “Aqui. Neste Lugar”, a romancista afirmou que a literatura possui magia específica capaz de “nos colocar dentro do nosso passado, sentindo o que sentiram os habitantes daquelas épocas distantes”. Para a autora, um livro consegue fazer isso, ao levar o leitor para lá e trazê-lo de volta espantado e, antes de mais nada, menos ignorante. “Conhecer nosso passado e entender nosso presente nos dá ferramentas para tornar possível um mundo melhor e mais justo”, refletiu Maria José, em fevereiro.
Desde os anos 2000, Maria José Silveira se consolida como uma das vozes mais importantes do romance goiano atual. Isso quem fala, com autoridade, são as pesquisadoras Maria Zaira Turchi Vera e Maria Tietzmann Silva em “O Fantasma de Luís Buñuel, de Maria José Silveira: da Repressão Política aos Dramas Existenciais de uma Geração”, trabalho consultado pelo DM no banco de teses da UFG. Sua trajetória se inicia com “A Mãe da Mãe de Sua Mãe e Suas Filhas” (2002), premiado pela Associação Paulista de Críticas de Arte.
Com “Eleanor Marx, Filha de Karl” (2003), considerada uma biografia romanceada do filósofo Karl Marx, Maria José conquista lugar notório na literatura brasileira. Também começa a burilar um estilo que mistura fatos históricos com ficção, característica marcante, sobretudo, do romance “O Fantasma de Luís Buñuel”, com o qual ganha menção honrosa no Prêmio Nestlé de Literatura: os acontecimentos históricos se desdobram, mas não importam tanto quanto o efeito que provocam na subjetividade dos personagens que os vivenciam.
A narrativa se organiza em cinco partes, todas elas sucedidas por um epílogo, que oferece pistas ao leitor. Cada uma delas, aliás, se passa numa década diferente e é protagonizada por um dos cinco personagens - Edu, Tadeu, Dina, Tonho, Esmeralda. Ah, detalhe relevante: são fãs do cineasta espanhol Luís Buñuel, expoente do movimento surrealista. Há um recorte de notícias publicadas no Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo e O Globo. “São notícias contemporâneas à ação ficcional”, explicam Maria Zaira e Maria Tietzmann, no artigo.
“Sou goiana”
Na apresentação de “Farejador de Águas”, romance que sai pela editora Instante, a escritora Maria José Silveira relata que, apesar de ser goiana, viveu no Estado até a adolescência. Assim que se mudou para São Paulo, não voltou a ter residência na sua terra. Apenas a visitava nas férias, com os filhos, para rever parentes e amigos. Mas, quando decidiu fazer literatura, notou sua goianidade. “Talvez por isso muitos de meus livros passem por Goiás.”
Maria José quer entender sua gente, despir-se da ignorância e compreender o lugar que a levou ao mundo. “Sim, tinha ciência de que o Cerrado estava em processo de extinção, mas não percebia, ou não queria perceber, que a terra que amo estava se transformando em outra ou, melhor dizendo, morrendo. E que essa morte da vegetação que ali estava antes teria influência dramática nas águas do país. Embora aborde a morte do Cerrado e a intolerável perda progressiva de suas águas, este romance não é apenas triste”, antecipa-se.
Por que quis escrever o romance, Maria José? “O desejo de escrever este romance sobre meu estado veio quando entendi minha ignorância a respeito do que de fato significavam suas árvores baixas e retorcida”, diz, ainda na apresentação.