Em quatro horas de música inédita, o indomável Miles Davis ressurge vivíssimo. Toca no disco “Miles in France — Miles Davis Quintet 1963/1964”, que entrará nas plataformas de streaming no dia 8 de novembro. Acalme-se: chegará também aos sites especializados em vinil.
Seis CDs e oito LPs serão publicados com notas escritas pelo jornalista Marcus J. Moore, respeitado crítico do jornal estadunidense “The New York Times” especializado em black music. Um dos discos, prensado em vinil azul-branco-vermelho, remete às cores francesas.
Seja na esfera profissional ou pessoal, Miles amava sociedade dos maudits poètes Charles Baudelaire e Arthur Rimbaud. Soprou seu trompete na França tantas vezes que lá se tornara destino no mundo preferido dele para concertos além dos limites americanos. Essa ligação foi iniciada pelo próprio instrumentista a partir de 1949, mas fortalecida nos anos seguintes.
Miles regressou ao país europeu nos anos 1960 já gênio sagrado da música, pois transformara o jazz anos antes com “Kind of Blue”. Dessa vez, contudo, acompanhavam-lhe os lendários Herbie Hancock (piano), Ron Carter (baixo) e Tony Williams (bateria).
No encarte de “Miles in France”, Carter lembra que nunca tinha tocado com alguém tão espetacular quanto Miles Davis. “Foi simplesmente impressionante ouvi-lo tocar daquele jeito, tocar com aquela intensidade, tocar com aquele ritmo, tocar com aquela direção noite após noite”, rememora o baixista, integrante fundamental no 2° quinteto do trompetista.
Em “So What”, Hancock desfila de forma alucinada pelo piano carregando energia capaz de pulverizar caretices. Logo depois, rolam improvisos vigorosos de Miles. O altíssimo nível se mantém nas oito faixas disponíveis no streaming: “Autumn Leaves”, “Milestones”, “I Thought About You”, “Joshua”, “All of You”, “Walkin´”, “Bye Bye Blackbird” e “Bye Bye”.
Tal qual uma pessoa deslumbrante, a música move-se com gracejo, por vezes transmite sensualidade, diria o escritor beat e poeta Amiri Baraka, pelos mistérios da noite jazzística. Felicidade total escutar temas, contratemas, inflexões de Miles e sua turma em pleno 2024.
Não ligo para o que falam de mim, seja bem ou mal. Eu sou o meu crítico mais exigente. Sou vaidoso demais para tocar qualquer coisa que não considere boa” Miles Davis, trompetista
Diante de Jimi Hendrix, entre 1968 e 1970, o músico mudou tudo outra vez. Os elepês “Miles in The Sky”, de 68, e “Filles de Kilimanjaro”, publicado no mesmo ano, foram gravados com instrumentos elétricos. Agora, o trompetista revolucionário criava composições abertas, baseadas em sentimentos rítmicos, fragmentos melódicos e grooves de baixo matadores.
Se os puritanos lhe criticavam, Miles dispensava teorizações vazias desses “loroteiros”. “Não ligo para o que falam de mim, seja bem ou mal. Eu sou o meu crítico mais exigente. Sou vaidoso demais para tocar qualquer coisa que não considere boa”, reconhecia o artista.
Ainda expandiria limites da música com três teclados e guitarra. Investindo em harmônicos estáticos e pulso roqueiro, teceria atmosfera assustadora, mas também engendraria tom reflexivo. “Bitches Brew”, no entanto, vai além: trompetista, saxofonista soprano, clarinetista baixo, dois baixistas, dois ou três tecladistas, três bateristas e um percussionista.
Era uma sequência agressiva e assustadora, agitada e excitante. “Eu fiz minha cabeça para ser melhor do que qualquer branco no meu instrumento”, dizia o músico, que inclinou-se ao balanço funky nos anos 70 e retornou ao mundo rocker na década seguinte. “Miles in France — Miles Davis Quintet 1963/1964” precisa ser ouvido como a grande obra de arte que é.
Início
Nascido em maio de 1926, numa cidadezinha às margens do rio Mississipi, Miles Davis vinha de família com boa condição financeira. O pai, Miles Dewey Davis Jr., exercia odontologia e passava algum tempo na fazenda situada no Arkansas, onde Miles tomara ensinamentos sobre andar a cavalo. Já a mãe, Cleota Henry Davis, tocava blues no piano.
Anos depois, Miles creditaria a ela gosto por roupas de grife, pois vestia casacos de pele e usava diamantes. Aos 13 anos, musicólatra, desenvolveu estilo que lhe definiria: ausência de vibrato. Seis anos depois, talentosíssimo, encantou-se pelo jazz moderno assim que ouvira o saxofonista Charlie Parker e o trompetista Dizzy Gillespie em St. Louis, Illinois, nos anos 40.
Quando avisara aos pais que queria acompanhar esses monstros sagrados em turnê, fizeram-lhe abandonar a ideia. Deu, todavia, seu jeito, convencendo-os a bancar seus estudos de música clássica na Julliard, em Nova York. Ali, verde acerca de drogas e mulheres, acelerou-se ao ritmo dessa metrópole de prédios altos e “toda aquela caralhada de gente”.
Para tanto, confiava em sua enorme habilidade no trompete (cada vez mais atrativa), tanto que precisara de apenas três sessões para gravar “The Birth Of The Cool”, entre 49 e 50. Em 54, tocou com o saxofonista colossal Sonny Rollins e o pianista econômico Thelonious Monk. No ano seguinte, formou uma banda irrefutável cujo saxofonista era John Coltrane.
Nessa época, Miles pensava diferente: “por que não jogar pra lá essa coisa de progressão de acordes?” Isso, afirmava, traria à música nova sonoridade, uma vez que priorizaria desenvolvimento das frases melódicas. O jazz abraçava modal. O jazz jamais seria igual. Nenhum dos instrumentistas conhecia nenhuma das músicas antes de entrar no estúdio.
A introdução soa enigmática. “So What”, com o pianista Bill Evans e o contrabaixista Paul Chambers, concebe atmosfera incerta. Incerta porque necessária. De repente, reverbera bateria a que Wilbur James Cobb se devota no estúdio nova-iorquino: “Kind Of Blue”.
Balizador, Miles comanda os improvisos transcorridos na rua 55, em Nova York. Abriga sax tenor de John Coltrane. Frases excitantes tomam de assalto nossos tímpanos no roubo do marasmo. Então, não menos genial, entra em cena sax alto de Cannonball Adderley.
Para gravar o blues “Freddie Freeloader”, o trompetista escalou o pianista Wynton Kelly. É o primeiro a solar. Jimmy Cobb baqueteia caminhos enérgicos na estrada ondulante do compasso para viajar pelos improvisos modais de Coltrane e Cannonball.
Na balada “Blue in Green”, Bill Evans suaviza “Kind Of Blue”. Miles aplica doses de melancolia no tema e, em seguida, Coltrane oferece suas aulas habituais de lirismo. Melômanos vibram com melodia desse som, o sax da paixão suprema, que diz da nossa procura pelo sentido existencial. Como desejo e religião, a música é experiência mística.
Em ritmo ternário, a peça jazzística “All Blues” não parou de ser tocada em jam sessions. Tem ritmo bluesy, com improvisos de Miles, Coltrane e Cannonball impulsionando o lirismo. “Flamenco Sketches”, por sua vez, resume o jazz modal em 9 minutos e 26 segundos: divagante. Mas, por favor, não confunda as coisas. Fala-se, aqui, de improviso. Ex-junkie, bad boy e lenda, Miles Davis morreu em setembro de 1991, aos 65 anos.