Havia o céu, a lua e a Tina Turner, que morreu ontem aos 83 anos. Se deus de fato existe, ele se materializava na voz rouca da cantora - com a qual despontou à frente da banda Ike & Tina Turner Revue nos anos 60 - e nos shows arrebatadores que passou a fazer em arenas gigantes nas décadas seguintes, quando se desvencilhara dos anos de abuso doméstico. Tina empolgava tanto pela sua faceta roqueira quanto pelo seu lado soulwoman.
Ao gravar “Honky Tonk Women”, clássico dos Rolling Stones, Tina injetou doses potentes de desinibição no palco. Com releitura de “Come Together”, faixa eternizada pelos Beatles, mostrou que tinha voz ligada em alta voltagem. Como se fosse um vulcão prestes a entrar em erupção no palco, brilhava no rock, era imensurável no soul e tinha uma performance de canto responsável por chacoalhar a cabeça de ninguém menos que Mick Jagger.
Da sua infância, recordava-se que a família arrendava terras. “Éramos fazendeiros - é o melhor que posso fazer para te explicar”, afirmou, numa entrevista à jornalista Nancy Collins, que escrevia à “Rolling Stone”. Para a cantora, parecia que as coisas estavam sob controle: ela e a irmã tinham seus quartos, a cada nova estação compravam roupas e sempre andavam arrumadas. “Nunca passamos fome. É claro, sabíamos a diferença entre nossa família e, digamos, as filhas dos professores das escolas - essas eram pessoas com educação.”
Família aos palcos
O pai era diácono da igreja, a mãe labutava em casa e, entre uma briga e outra, resolveram se separar. Aos 10 anos, Tina a viu sair para nunca mais voltar. O dinheiro passou a ser contado, a família estava destruída, a esperança fora embora. Mas antes disso, quando o clima se arruinava, a mãe lhe pegava pela mão. Fazia o mesmo com a irmã. Destino? Casa da avó. O pai, então, convencia a esposa de que o certo era voltar. Só que dessa vez, não voltou.
Três anos depois, quem abandonou Tina Turner foi o pai. “Meu pai e eu não éramos muito próximos, então foi aquilo foi tranquilo. Não me importei. Eu tinha um pouco de medo dele. Não era muito amigável. Era amigável com todo mundo, mas não comigo. Meus pais não eram meus, e eu não pertencia a eles, realmente, então, quando eles foram embora, era como se nunca tivesse estado lá”, rememorava a cantora, uma das grandes vozes do século 20.
Formou-se no colegial, trabalhou como auxiliar de enfermagem e, à noite, ela e a irmã frequentavam boates de St. Louis, nos EUA. Numa delas, encontrou o músico Ike Turner, que tocava na banda Kings of Rhythm. Tina tinha 18 anos e apaixonou-se pelo guitarrista - oito anos mais velho. De repente, ela se viu diante de um microfone. Microfone esse, aliás, que virara um convite para ingressar ao grupo. Performance e voz impactaram.
Logo nos primeiros shows, chamou atenção pelo domínio que tinha do palco. Não demorou até que entrasse no estúdio, ainda como Little Ann, e gravasse a faixa “Box Top”, de Ike. Em 58, ano no qual a música foi lançada, Tina se tornou mãe de Raymond Craig, cujo pai era o saxofonista do Kings of Rhythm, Raymond Craig. Tempo depois, decidiu morar com Ike, de quem dizia ter gostado como “um irmão”. “Não queria um relacionamento”, contava.
O casal lançou, em 1960, o primeiro single da carreira, “A Fool In Love”. Sucesso instantâneo, alcançou o top 30 da Billboard, a parada mais importante dos EUA. No ano seguinte, fizeram mais um hit, “It´s Gonna Work Out Fine”, que os levou à indicação do Grammy de Melhor Performance de Rock and Roll. Por todo os anos 1960, as turnês da dupla arregimentavam multidões. Afinal de contas, no encaretado sul estadunidense, o espetáculo de Tina e Ike quebrava normas de boa conduta, ou qualquer bobagem similar.
Só que o mercado fonográfico, machista e um tanto reacionário, não se mostrava disposto a escutar música feita por artistas afro-americanos, como Tinta Turner e Ike Turner. Quem falou que os dois aceitavam essa tal de norma da indústria? Nadando contra a corrente, fizeram o disco “River Deep - Mountain High”, um fracasso nos States, porém sucesso na Europa. O álbum possui a pérola “The Book Of Taliesyn”, regravada, em 1968, pela banda Deep Purple - nesta versão, há uma atmosfera psicodélica, com guitarras enfurecidas.
Como qualquer um sabe, os empresários erraram: Mick Jagger, por exemplo, achou a música de Tina e Ike encantadora. Convidou-os a fazerem a abertura dos Rolling Stones, banda que alimentava a falsa rivalidade com os Beatles, nos anos 1960. Mas, se por um lado as coisas iam de vento em popa, por outro, tudo andava um inferno. Para Tina Turner, com certeza, pois havia adotado esse nome por determinação do marido - isso mesmo, ele escolhia tudo, até a maneira na qual assinaria o próprio nome. Tamanha violência a levou a tentar suicídio.
Tchau, Ike!
Passada - ainda que um pouco - da temporada no inferno, Tina voltou com tudo. Junto com Ike, a essa altura já viciado em cocaína, lançaram uma estupenda versão para o clássico “Proud Mary”, do Creedence. Número de vendas? Segure-se aí: um milhão! Considerada a melhor faixa de 71, faturou o Grammy. Mesmo assim, um enciumado Ike Turner não se emendava, bebia demais, usava drogas e, consequentemente, espancava Tina Turner.
Atrás de novidade, Tina conheceu o produtor Roger Davis, que relançara a carreira de Joe Cocker. Converteu-se ao budismo, entrou no estúdio e, em 74, lançou o disco “Tina Turns The Country On!”, com releituras de canções lendárias do country e do folk, gêneros que povoavam a memória afetiva da cantora, pois escutava esse tipo de música na infância. Depois, fez “Acid Queen” (1975), “Rough” (1978) e “Love Explosion” (1979).
Mais ou menos nessa época, colocou um ponto final no casamento com Ike. Nas entrevistas, dizia que tinha sido vítima de violência física e psicológica. Segundo Tina, o ex-parceiro lhe quebrou a mandíbula e, noutro momento, lhe atirara xícara de café quente no rosto. Ele ainda a obrigava a cantar, independente do estado que estivesse, boa ou não. Até que, uma vez livre de Ike Turner, lançou-se numa bem-sucedida carreira solo, na qual criou hits como “The Best”, “We Don’t Need Another Hero” e “Goldeneye e Honest I Do”.
Nascida em Brownsville, Tennessee, nos EUA, em novembro de 1939, Tina Turner lutava há anos contra um câncer. Segundo declarou ontem o agente da artista à imprensa, Tina morreu “pacificamente após uma doença grave”. “Com sua música e sua paixão sem limites pela vida, ela encantou milhões de fãs ao redor do mundo e inspirou as estrelas de amanhã. Hoje nos despedimos de uma querida amiga que nos deixa sua maior obra: sua música”, diz post, publicado no Instagram da cantora. Tina Turner, simplesmente a melhor.