Murakami promove encontro entre lendas da música
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 20 de junho de 2023 às 00:40 | Atualizado há 2 anos
Duas lendas da música se encontram em estúdio: Charlie Parker e Tom Jobim. Era 1963, muito tempo já havia se passado desde a última vez que os fãs tinham ouvido falar em Charlie “bird” Parker e, por todos os lugares, os amantes de jazz pediam pela volta do músico. Onde está ele? Qualquer um sabia que viciou-se. Heroína, a dama dos junkies. Além de tudo, teve pneumonia, moléstias nos órgãos, padeceu de diabetes e doenças mentais.
Seria, portanto, um milagre vê-lo levar um saxofone à boca. Mas o escritor japonês Haruki Murakami, fã de jazz e dono de um bar em Tóquio que tocava músicas do estilo nos anos 70, achou interessante não só o lendário saxofonista lançar novo disco, como também fazê-lo em parceria com o maestro Tom Jobim. “Dá para acreditar numa coisa dessas? É melhor acreditar, pois aconteceu de verdade”, diz Murakami, no conto “Charlie Parker Plays Bossa Nova”, que integra obra “Primeira Pessoa do Singular”, publicado pela Cia das Letras.
Só que não tinha disco nenhum do jazzista, que morrera em março de 1955, anos antes do movimento criado por Tom, Vinícius de Moraes e João Gilberto estourar pelo mundo. Trata-se de um texto literário, um conto, ou uma “crítica ficcional” – nas palavras do escritor. Murakami inventa os detalhes, descreve os arranjos, diz que o maestro brasileiro “toca quase tudo com notas soltas, acrescentando vez ou outra um acorde simples, discreto.” “Como se colocasse com delicadeza uma almofada macia atrás das costas da moça”, pinça.
Tradição fantástica
Seguindo a tradição fantástica de Julio Cortázar, Jorge Luis Borges e Mário Vargas Llosa, o escritor viu o texto ser publicado numa revista literária da universidade. O editor entendeu que ele, narrador, falava de um disco real e, sem pensar duas vezes, programou o material para sair no número seguinte da publicação, como se fazia com qualquer outra crítica. Quem viabilizou que a “análise” fosse veiculada no número três da publicação (tiveram quatro) foi o irmão do publisher, definindo os escritos murakamianos como “divertidos”.
Assim que a revista saiu, contudo, o autor levou um puxão de orelha. Chamaram-no de irresponsável. Havia muitos fãs de Charlie Parker entre os leitores. O narrador viajou a Nova Iorque e, ao observar um disco com o mesmo nome do álbum que criou numa loja, ficara boquiaberto. “Olhei novamente ao redor. Aquilo era mesmo Nova York? Sim, sem dúvida eu estava no centro de Nova York. Em uma pequena loja de discos. Eu não havia sido transportado para um mundo fantástico”, questiona-se. Decidiu não comprá-lo. Afinal, era um disco em que Tom e Charlie tocam juntos.
A música aparece em outro momento de “Primeira Pessoa do Singular”. Dos oito contos, três possuem os sons como eixo da narrativa. Em “With The Beatles”, por exemplo, usa-se o segundo disco da banda britânica como anedota para rememorar momentos com a primeira namorada do narrador, que se matou. A história tem início com memória bonita de uma jovem mulher andando pelo corredor da escola com elepê dos Beatles embaixo do braço. Essa garota, porém, não é mais vista na narrativa, cujo narrador não quer envelhecer.
Conversa musical
É preciso pensar a obra de Haruki Murakami como uma conversa interminável com a música. Nascido em 1951, num subúrbio de Tóquio, o protagonista de “Sul da Fronteira, Oeste do Sol”, Hajime está na meia-idade. Conquistou o que queria. Os anos pós-guerra lhe trouxeram bom casamento, duas filhas, carreira exemplar, dois clubes de jazz sob sua administração. Contudo, não consegue esquecer a sensação incômoda de que nada disso lhe traz felicidade, além de ser acompanhado por memórias da infância que envolvem uma garota inteligente e solitária.
Tudo, naturalmente, ao som de jazz. “Para criar alguma coisa, os romancistas ou os músicos têm a necessidade de descer as escadas e encontrar uma passagem que os leve ao segundo subsolo”, disse o romancista, numa palestra. Assim como John Lennon, de quem é fã, o escritor é casado com uma mulher chamada Yoko. “O trabalho de um romancista é sonhar acordado”, afirmou, em entrevista. De preferência, escutando Beatles ou Rolling Stones.
Se indagações pela via da metafísica e reflexões sobre solidão permeiam a obra de Murakami ao som de música, pode-se dizer que o escritor endosse frase escrita pelo filósofo Friedrich Nietzsche: “sem música, a vida seria um erro”. Na obra murakamiana, de fato, os sons servem de eixo, representações metafóricas ou fio que conduz a investigações sobre memória e a identidade de seus personagens. Assim é, lógico, em “Primeira Pessoa do Singular”.
Primeira Pessoa do Singular
Autor: Haruki Murakami
Editora: Alfaguara
Gêneros: Contos
Preço: R$ 59,90