O cantor e compositor Odair José, 75, chama atenção para algo sério: inteligência artificial. Para o artista, caminharemos daqui pra frente lado a lado com essa poderosa tecnologia. Daí ter transformado o trigésimo nono álbum da carreira numa obra conceitual sobre a IA.
Odair se aliou à tecnologia para executar um disco contemporâneo, como – aliás – tem feito o goiano nos últimos trabalhos (basta ouvir “Hibernar na Casa das Moças Ouvindo Rádio”, “Gatos e Ratos” e “Dia 16”). Cronista de olhar aguçado, apresenta ao público trabalho de qualidade. Fala sobre liberdade sexual, diferencia paixão de amor e lamenta o fato de a humanidade repetir os mesmos erros. É antídoto contra a caretice reinante na sociedade.
Sob produção do multi-instrumentista Junior Freitas, empresta a sensibilidade – e facilidade comunicativa – para versar sobre os seres humanos e o sentido da vida. “Seres Humanos (e a Inteligência Artificial)”, se pararmos para pensar, é existencialista. Não abre mão, todavia, de riffs à la Keith Richards. Odair se mostra pop. Está mais roqueiro, pois contesta dogmas.
“Desejo”, balada soul, traz arranjo que soa simples, mas não perde a sofisticação. A cozinha funciona bem, com a guitarra e seus acordes abrilhantando o som. Na faixa "Seres Humanos", Nádia - IA da Audimee - canta em dueto com Odair na faixa-bônus, "No Ponto".
Sintonizado com as questões da vida contemporânea, o artista discute liberdade sexual desde 78. Na ocasião, gravou a música “Forma de Sentir” – em que o eu-lírico fala que “és entendida e vai entender/ Que eu entendo e aceito a tua forma de amor/ Que eu entendo e aceito a tua forma de amor”. “Ame, assuma e consuma”, diz, reverberando a famosa frase “é proibido proibir”, do cantor e compositor baiano Caetano Veloso.
A IA segue sugestões de Odair e Junior: toca piano acústico em “Repetições” e “Submisso”, baixo acústico em “Submisso”, bateria em “Bipolar”, Fender Rhodes em "O Sono" e percussão adicional em “Sobre a Gente”. São boas canções. Poderiam estar ocupando discos históricos. Bem possível que povoasse até mesmo o repertório da ópera-soul “O Filho de José e Maria”.
Odair sempre soube o que estava fazendo. Só que a crítica torcia o nariz. Tárik de Souza execrou a guinada estética do morrinhense em “O Filho de José e Maria”, gravado sob direção artística de Durval Ferreira e merecedor do status cult lhe negado, seja pelo requinte instrumental ou pelos versos épicos. Para o decano do jornalismo, Odair pensou que “podia mudar de gênero como quem troca de camisa”, tal qual escreveu no semanário “Opinião”.
Na entrevista que se segue, Odair revela projetos futuros. Tece ainda opiniões polêmicas acerca de religião e sexo. Para ele, IA ditará os rumos da música. A seguir, leia os melhores trechos do bate-papo com Diário da Manhã:
Diário da Manhã - Como foi criar as músicas de “Seres Humanos”?
Odair José – Tive essa ideia por volta de 2022. Na época, compus a canção “Seres Humanos”. Queria fazer disco conceitual analisando o ser humano de um modo geral, suas falhas, seus acertos, nossa ignorância para muitas coisas, nossa teimosia, nossos erros. Ideia era que fosse uma pequena ópera. A gente – às vezes – erra mais do que acerta. E, por incrível que pareça, gostamos de repetir os erros. Fui vendo essas coisas. Tem ainda o aspecto da polarização. Achava que – com o passar do tempo – o ser humano fosse ficar mais suave, mais leve. Por um lado ficou, sim. Mas, de um modo geral, se tornou muito polarizado. Vi que boa parte dele está caminhando para um processo de involução. As pessoas pegam tudo pronto. Acho que deveriam, sei lá, prestar mais atenção no conteúdo da vida, em coisas que a vida pode nos enriquecer. De repente, ficaram muito dentro de um processo, sabe? Muita rede social. Falei: ‘vixe, isso pode dar errado lá na frente’.
DM – Quando entra a inteligência artificial no álbum?
Odair – Ela veio quando comecei a gravar o disco. Tô gravando “Seres Humanos” há um ano e meio. Foi feito por mim e pelo Junior Freitas. Ninguém mais participou, além da inteligência artificial. É um disco feito por duas pessoas. Não utilizei mais músico nenhum, não utilizei mais ninguém. Júnior Freitas é multi-instrumentista. Ele tocou, ele programou, ele gravou. E ele veio e me trouxe a ideia da IA. A gente começou a conversar sobre a inteligência artificial. Ele falou: “olha, vou pesquisar aqui”. Um dia me chamou e disse: “você tem interesse em usar no processo? A gente pode tentar”. Respondi: “eu tenho”. Começamos a gravar o disco e começar a usar a inteligência artificial, conforme a gente foi tomando conhecimento do programa e se descobrindo junto com ela. Ela nos ajudando e a gente captando onde poderia realmente ser útil dentro da nossa produção.
DM – Paul McCartney já declarou que o futuro da música está na IA. O que pensa disso?
Odair – Tinha que ser Paul McCartney, né? Eu estou seguindo Paul desde quando era jovenzinho aí em Goiânia. Ele apareceu nos Beatles. Disse: “pô, esse cara é especial. É um músico e tanto”. Desde lá, então, o acompanho. Já vi Paul ao vivo. É genial. Olha, eu concordo com Paul. Acho que o compositor e o artista não serão, de certa forma, deixados de lado. Mas a IA vai tomar conta das coisas. Não tem jeito. Você vê no meu trabalho: o que a gente fez? Ela não fez música. Quem compôs foi o Odair José. Mas, se você pedir pra ela fazer uma música estilo Odair José, ela bate perto. Fica parecido, se aproxima.
Ela toca contrabaixo, ela toca piano – é um baixo acústico, inclusive – toca percussão, toca bateria. A única coisa que ela não tocou foi a guitarra. E eu cantei. Odair José, cantor e compositor
DM – O que a IA tocou em “Seres Humanos”?
Odair – Ela tocou contrabaixo, tocou piano, tocou percussão. Fez narrativas comigo, cantou comigo e, se você deixar, faz o disco todo. Foi ela quem masterizou o produto. A inteligência artificial, eu acredito, é possível que tire o emprego de muita gente. Essa regulamentação quem tem que ver são os governos, não é a gente. Mas, agora, pra mim, é um fato – e eu concordo com o Paul: não só na música, tá? Acho que daqui a pouco até na produção do agronegócio estará a inteligência artificial, na medicina, na arte, nos negócios. Em tudo. Acho que já está presente. E a cada dia é uma coisa terrível. Essas empresas de tecnologias estão investindo fortunas nisso. E a inteligência artificial, cada vez que você for fazer as coisas com ela, você percebe o quanto aquilo é prático, o quanto aquilo é inteligente mesmo e o quanto aquilo te facilita a vida. Não vejo muita diferença, não. Tenho uma música no disco, “Submisso”, em que ela toca contrabaixo, ela toca piano – é um baixo acústico, inclusive – toca percussão, toca bateria. A única coisa que ela não tocou foi a guitarra. E eu cantei.
DM – Fiquei com a impressão de que, com “Seres Humanos”, você nos chama atenção de certa forma para o poder da IA. O que te motivou a lançar esse olhar de cronista?
Odair – Sim, claro. Você veja bem: a capa do álbum é “Seres Humanos e Inteligência Artificial”. Onde eu quis chegar? Eu quis chamar atenção de vocês pra que agora é lado a lado, é passo a passo. Os seres humanos vão caminhar com IA do lado. Não vou dizer na frente, mas vai estar sempre ali do lado. Isso é inevitável. Já está aí, como disse anteriormente. Então, quis chamar atenção. É minha análise como cronista. Sempre fui compositor-cronista. De ver a coisa e dizer “pô, vou falar disso aqui pras pessoas, vou alertar as pessoas”. Às vezes, a coisa vai indo e muita gente, principalmente um povo mais simples, que eu tenho o dom de atingir, pode não prestar atenção nisso. Apesar de que hoje, o povo simples está mais ligado na tecnologia do que muita gente intelectual. O intelectual, às vezes, repudia. Mas o que acontece? Quero trazer pras pessoas esse olhar, dizer “olha, taí e não deixe passar despercebido, porque não dá”. Esse foi meu foco. Esse foi o conceito que usei pra fazer o disco e falar pras pessoas da inteligência artificial e dos seres humanos. Agora é uma parceria.
DM - Desde os anos 70, observamos uma preocupação de sua parte em discutir temas como a liberdade sexual. Por que ainda é importante falarmos sobre esse assunto?
Odair – Olha, Marcus, são observações. Mas achei que a liberdade sexual avança, avança, avança, mas tem sempre um preconceito, um olhar preconceituoso quando as pessoas se deparam com o fato na sua frente. Ou enquanto conversa. Por mais que a liberdade sexual esteja avançando no mundo inteiro, como uma liberdade mesmo, a gente sabe que existe uma resistência. Então, acho que tem sempre tempo de falar sobre isso. Falei na década de 70 – sim – várias vezes. E olhe que lá era bem mais fechado. As pessoas não se abriam tanto. Hoje, as pessoas estão dizendo “tô aqui, sou isso e acabou”.
DM – Mesmo assim, sempre é momento de se discutir o assunto, não?
Odair – E sempre há um momento para se falar sobre isso. Na música “Desejos”, que é onde eu falo mais claramente, tô falando de amor. Porque o amor tem várias faces, vários rostos. O amor tem várias maneiras. É disso que falo na canção "Desejo". A pessoa se descobrindo para outra face do amor, pra uma outra face do desejo. É um desejo novo te chamando. E às vezes um desejo novo te chama. É muito isso: às vezes o mesmo cara que é contra, o cara que fica com pé atrás a respeito da liberdade sexual, ele mesmo sufoca seus desejos. Fiz essa canção também para essas pessoas que estão sufocando seus desejos. Libertem esses desejos. Deixam ele fluir. Abram essa porta. Vão em frente. É sempre necessário. É sempre bom falar disso. Eu gosto.
DM – Em sua opinião, a caretice afrouxou ou apertou desde os anos em que você cantava hits como “A Noite Mais Linda do Mundo” e “Vou Tirar Você Desse Lugar”?
Odair – Costumo dizer que – daí vem “Seres Humanos” – essa caretice permanece. Ao contrário, nós não evoluímos nesse sentido. Não vou dizer que regredimos. Mas evoluir também não. Essa caretice permanece. As pessoas são muito caretas. Existem músicas minhas feitas em 70 que eu canto – ou se eu cantar – e as pessoas viram a cara. Como é o caso de “O Filho de José e Maria”, meu álbum de 77, que agora até vai sair um livro no mês de agosto falando dos bastidores, da criação, da repercussão. Ele ainda faz as pessoas virarem a cara. Então, essa caretice permanece. As pessoas – quando falei da polarização – buscam certos lados na vida que fazem com que se tornem caretas.
DM – Você sofreu críticas duras do catolicismo em sua carreira. Como avalia hoje a influência do discurso religioso no comportamento das pessoas?
Odair – Voltando a falar do disco “O Filho de José e Maria”: quando foi lançado, justamente por cunho religioso e pela religiosidade exagerada das pessoas, essa coisa desinformada... Você pode ser religioso, mas não precisa ser desinformado. Você tem a obrigação de ter fé, de acreditar em Deus – cada um da sua maneira. Pode ser através da religião. Mas você não precisa ser um desinformado. Não precisa ser um pau-mandado de pessoas que comandam a religião. Você precisa ter sua própria visão do que é Deus, do que é fé. Você não precisa ficar sendo manipulado por seitas religiosas. Lá nos anos 70, eu tive dificuldade com o “O Filho de José e Maria”. A igreja na época ameaçou me excomungar. Não sei se excomungou. Não fui atrás disso. Isso ajudou muito para que a mídia, as pessoas fossem contra o disco. Se falou que eu estava sendo excomungado pela igreja por conta daquele disco. Então, se a igreja está fazendo isso, não podemos nem ver a obra. Foi, pra mim, uma dificuldade enorme. Me bloquearam por conta de um disco, que hoje é reconhecidamente um trabalho muito bem feito em termos técnicos, muito musical. Não tem nada de errado nele.
DM – Tanto é que sobrevive até hoje – e de uma forma emblemática.
Odair – Soube que nesse livro que vai sair. E alguém perguntado por que me ameaçaram de excomungar em 77, se isso fosse lançado hoje aconteceria o quê? Alguém disse, não sei quem, soube através de uma pessoa que está participando do livro, hoje ele (o disco "O Filho de José e Maria") seria assassinado em praça pública. O lado religioso das pessoas, de uma certa forma, está mais fechado. Por isso que eu falei que as pessoas têm que ter religião, mas não podem ser desinformadas a respeito da própria religião.
DM - Identifiquei em “Seres Humanos” riffs stonianos e baladas soul à la Otis Redding. Quando esse tipo de música começou a fazer tua cabeça?
Odair – Que bom que você percebeu essas certas influências no meu trabalho de riffs. Sou um cara que escuta de tudo. Sou um cara aberto. Sou um cara curioso. Hoje, é verdade, menos do que no passado. Fico prestando atenção nas coisas. Na medida do possível, pra não assustar muito os conservadores que ficam “ah, mas ele mudou tanto”, eu uso essas minhas observações para trazer pro meu trabalho. Acho até que esses riffs ajudam num conceito que procurei ter em fazer um trabalho atual, mas com cara de Odair José.
DM – Não posso deixar de perguntar: prefere trabalhar com músicos ou com inteligência artificial?
Odair – Boa pergunta. Eu prefiro trabalhar com os dois. Como disse antes, a inteligência artificial veio para ficar. Lanço meu disco no dia 7 de julho, aqui em São Paulo, no teatro Sesc Pinheiros. Será o primeiro show do disco “Seres Humanos”. Gostaria de levar para o palco a inteligência artificial para participar com a gente. Ainda não consegui, mas espero que consiga no futuro. O negócio é juntar os dois. Você não precisa abrir mão do músico. Você não precisa mais abrir mão da inteligência artificial. Eu fico com os dois.