Cultura

Não verás país nenhum

Diário da Manhã

Publicado em 21 de fevereiro de 2022 às 13:40 | Atualizado há 4 meses


“Ao escrever o escritor diz: olhe como estamos vivendo. Você acha certo, racional, humano? É isso que você quer? Isso te dá esperança de quê? Aqui está” – Ignácio de Loyola Brandão, escritor

Para criar “Não Verás País Nenhum”, Loyola Brandão se submeteu a um processo criativo intenso. Estava empregado na Editora Abril, em 1972, época em que chegou a esboçar um rascunho de um conto intitulado “O Homem do Furo na Mão”. A ideia nasceu das conversas que o autor tinha com colegas de redação, sobretudo a respeito a ditadura militar, regime então em vigor no país, e as nefastas consequências ao Brasil, com prisões arbitrárias, mortes nos porões e torturas no calabouço da repressão.

Sem função
Segundo o celebrado romancista, o escritor não tem uma função específica e, ao pôr no papel suas ideias, acaba descrevendo seu país, seu mundo, sua aldeia, sua gente e a humanidade. O escritor, acredita, ajuda a iluminar um pouco a sombra, o escuro, tirando-nos da obscuridade. “Ao escrever o escritor diz: olhe como estamos vivendo. Você acha certo, racional, humano? É isso que você quer? Isso te dá esperança de quê? Aqui está”, explica o autor de obras como “Aconteceu em Woodstock” e “Zero”.

O enredo gira em torno de um professor de História que, nas primeiras décadas deste século, se vê aposentado por insistir no “erro” de publicar os fatos tais como são, recusando-se a falseá-los, ao mesmo tempo em que os governantes reescrevem a realidade para atender seus interesses. É como se a trama fosse baseada no Brasil dos tempos da covid-19, época de notícias falsas, ou verdades alternativas, para se utilizar de uma expressão cunhada por Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos.

“Neste livro, volta e meia, o leitor tem de dizer a si mesmo “É ficção!”, para não ser engolido e sufocado pelas realidades de hoje e pelas alegorias que povoam as páginas”, escreve o jornalista Washington Novaes, que comandou uma equipe que contava com as estrelas do jornalismo Reynaldo Jardim e Jânio de Freitas neste DM, na apresentação de “Não Verás País Nenhum” em lançada em 2012. “Há quem diga que artistas são uma espécie rara da raça. E são mesmo – pela capacidade de antever, enxergar muito antes que os simples mortais, graças a sua sensibilidade aguda.”



Não Verás País Nenhum
Autor: Ignácio de Loyola Brandão
Editora: Global
Preço: R$ 69,90

Loyola de Brandão, como provou em suas obras, tem essa sensibilidade. O título do romance foi extraído de um verso escrito pelo poeta Olavo Bilac, em “A Pátria”, de 1904. “Criança! Não verás país nenhum como este!/ Imita na grandeza a terra em que naceste”, diz o parnasiano Bilac. Cirúrgico? Para a historiadora Heloísa M. Starling, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e autora de texto que está na reedição da Global, sim: “Cortou o verso de Bilac no ponto exato, inverteu bruscamente os principais componentes da nossa projeção utópica de país e revelou que alguma coisa deu muito errado no Brasil.”

Com sete décadas dedicadas à escrita, Ignácio de Loyola Brandão continua levando a sério os conselhos de Graciliano Ramos: é necessário limpar o texto, enxugar os excessos, usar palavras para dizer, não enfeitar. Em “Não Verás País Nenhum”, para referenciar o poeta português Fernando Pessoa, “o inexplicável horror de saber que esta vida é verdadeira” guia todo o romance. Como seu autor, um clássico imortal.



Estamos sem tempo para cremar os corpos. Os esgotos se abrem ao ar livre, em vagonetes, na vala do rio. Cheiro fétido, inseticidas impotentes. O lixo forma setenta, setenta e poucas colinas que ondulam, habitadas, todas. E o sol, como se estivesse expressando sua fúria, corrói a carne e poucas horas depois a apodrece – eis uma atmosfera que racha a pele, lacrimeja os olhos, mata os animais.

Os rios estão com baixo nível, tudo é fruto do desmatamento, resultando na paisagem urbana do empoeiramento. Indignados ficamos. Indignado está Souza, um professor de História demitido de suas funções pela lei de segurança. Adelaide, sua esposa, nunca tinha levantado a voz. São trinta e dois anos casados. Em minutos, ele precisa estar no ponto ou perderá o S-7.58, seu transporte autorizado. “Não aguento mais esse paletó. Passo o dia suando”, reclama. Sem a indumentária, todavia, não trabalha.

Em “Não Verás País Nenhum”, romance escrito por Ignácio de Loyola Brandão que completa quatro décadas com reedição especial pela Global, o cenário apocalíptico encontra paralelo com a realidade atual, em cujas páginas de jornais habitam meio-ambiente destruído, falta de água, flores artificiais, controle de informação, excesso populacional, filas para tudo, polícia corrupta, governantes medíocres, alienação geral. Nas ruas, como se não bastasse tamanha desgraça, as bicicletas se amontoam.

A ausência de veículos diminui a aglomeração? Não. Os ciclistas invadem faixas destinadas aos ônibus, os ônibus invadem as faixas destinadas aos ciclistas, subindo nas calçadas e atropelando as pessoas. “Quem escreve precisa de coisas básicas, como intuição, instinto, coragem de arriscar, arrojo, visão para sacar as coisas (o oculto), não ter medo do absurdo. Ser visionário não faz mal a ninguém. Às vezes, tudo é tão claro, é só colocar no papel (epa, monitor)”, afirma Loyola Brandão, imortal da ABL.

Quando começou a escrever “Não Verás País Nenhum”, entre meados dos anos 70 e início da década de 80, as pautas ambientais e ecológicas ainda não tinham vindo à tona com força. Com timidez, davam-se os primeiros passos. Sem alarde. Mas Loyola Brandão recorda-se que lia notícias esquisitas em jornais e revistas como neve no deserto do Saara, aquecimento solar, doenças estranhas em homens e animais, degelo dos polos, devastação, a crise hídrica no futuro: o mundo, aos poucos, ruía.

“E se o Amazonas fosse devastado e transformado em deserto? Uma metáfora? Sim. Pesquisei. Montei um arquivo de quatro mil notícias, reportagens, artigos, livros e livros, tudo e comecei. Deu no que deu”, reflete o escritor, ressaltando que inventou, a realidade lhe seguiu e agora está passando à sua frente, mas não pede licença. “Ninguém sabe o medo que tive de fracassar. Quem ia ler um livro pesado assim? Daí eu entrar com alguma ironia muitas vezes. Literatura, gente, é não ter medo de ousar.”



“Ao escrever o escritor diz: olhe como estamos vivendo. Você acha certo, racional, humano? É isso que você quer? Isso te dá esperança de quê? Aqui está” – Ignácio de Loyola Brandão, escritor

Para criar “Não Verás País Nenhum”, Loyola Brandão se submeteu a um processo criativo intenso. Estava empregado na Editora Abril, em 1972, época em que chegou a esboçar um rascunho de um conto intitulado “O Homem do Furo na Mão”. A ideia nasceu das conversas que o autor tinha com colegas de redação, sobretudo a respeito a ditadura militar, regime então em vigor no país, e as nefastas consequências ao Brasil, com prisões arbitrárias, mortes nos porões e torturas no calabouço da repressão.

Sem função
Segundo o celebrado romancista, o escritor não tem uma função específica e, ao pôr no papel suas ideias, acaba descrevendo seu país, seu mundo, sua aldeia, sua gente e a humanidade. O escritor, acredita, ajuda a iluminar um pouco a sombra, o escuro, tirando-nos da obscuridade. “Ao escrever o escritor diz: olhe como estamos vivendo. Você acha certo, racional, humano? É isso que você quer? Isso te dá esperança de quê? Aqui está”, explica o autor de obras como “Aconteceu em Woodstock” e “Zero”.

O enredo gira em torno de um professor de História que, nas primeiras décadas deste século, se vê aposentado por insistir no “erro” de publicar os fatos tais como são, recusando-se a falseá-los, ao mesmo tempo em que os governantes reescrevem a realidade para atender seus interesses. É como se a trama fosse baseada no Brasil dos tempos da covid-19, época de notícias falsas, ou verdades alternativas, para se utilizar de uma expressão cunhada por Donald Trump, ex-presidente dos Estados Unidos.

“Neste livro, volta e meia, o leitor tem de dizer a si mesmo “É ficção!”, para não ser engolido e sufocado pelas realidades de hoje e pelas alegorias que povoam as páginas”, escreve o jornalista Washington Novaes, que comandou uma equipe que contava com as estrelas do jornalismo Reynaldo Jardim e Jânio de Freitas neste DM, na apresentação de “Não Verás País Nenhum” em lançada em 2012. “Há quem diga que artistas são uma espécie rara da raça. E são mesmo – pela capacidade de antever, enxergar muito antes que os simples mortais, graças a sua sensibilidade aguda.”



Não Verás País Nenhum
Autor: Ignácio de Loyola Brandão
Editora: Global
Preço: R$ 69,90

Loyola de Brandão, como provou em suas obras, tem essa sensibilidade. O título do romance foi extraído de um verso escrito pelo poeta Olavo Bilac, em “A Pátria”, de 1904. “Criança! Não verás país nenhum como este!/ Imita na grandeza a terra em que naceste”, diz o parnasiano Bilac. Cirúrgico? Para a historiadora Heloísa M. Starling, professora da Universidade Federal de Minas Gerais e autora de texto que está na reedição da Global, sim: “Cortou o verso de Bilac no ponto exato, inverteu bruscamente os principais componentes da nossa projeção utópica de país e revelou que alguma coisa deu muito errado no Brasil.”

Com sete décadas dedicadas à escrita, Ignácio de Loyola Brandão continua levando a sério os conselhos de Graciliano Ramos: é necessário limpar o texto, enxugar os excessos, usar palavras para dizer, não enfeitar. Em “Não Verás País Nenhum”, para referenciar o poeta português Fernando Pessoa, “o inexplicável horror de saber que esta vida é verdadeira” guia todo o romance. Como seu autor, um clássico imortal.


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