‘Não Verás País Nenhum’ completa 40 anos, ganha reedição especial e retrata atmosfera que racha a pele
Marcus Vinícius Beck
Publicado em 21 de fevereiro de 2022 às 16:22 | Atualizado há 3 anos
Estamos
sem tempo para cremar os corpos. Os esgotos se abrem ao ar livre, em vagonetes,
na vala do rio. Cheiro fétido, inseticidas impotentes. O lixo forma coisa de
setenta, setenta e poucas colinas que, habitadas, ondulam todas. E o sol, como
se estivesse expressando sua fúria, corrói a carne e poucas horas depois a
apodrece – eis uma atmosfera que racha a pele, lacrimeja os olhos, mata os
animais.
Os
rios estão com baixo nível, tudo é fruto do desmatamento, resultando na
paisagem urbana do empoeiramento. Indignados ficamos. Indignado está Souza, um
professor de História demitido de suas funções pela lei de segurança. Adelaide,
sua esposa, nunca tinha levantado a voz. São trinta e dois anos casados. Em minutos,
ele precisa estar no ponto ou perderá o S-7.58, seu transporte autorizado. “Não
aguento mais esse paletó. Passo o dia suando”, reclama. Sem a indumentária,
todavia, não trabalha.
Em
“Não Verás País Nenhum”, romance escrito por Ignácio de Loyola Brandão que
completa quatro décadas com reedição especial pela Global, o cenário
apocalíptico encontra paralelo com a realidade atual, em cujas páginas de jornais
habitam meio-ambiente destruído, falta de água, flores artificiais, controle de
informação, excesso populacional, filas para tudo, polícia corrupta,
governantes medíocres, alienação geral. Nas ruas, como se não bastasse tamanha
desgraça, as bicicletas se amontoam.
A
ausência de veículos diminui a aglomeração? Não. Os ciclistas invadem faixas
destinadas aos ônibus, os ônibus invadem as faixas destinadas aos ciclistas,
subindo nas calçadas e atropelando as pessoas. “Quem escreve precisa de coisas
básicas, como intuição, instinto, coragem de arriscar, arrojo, visão para sacar
as coisas (o oculto), não ter medo do absurdo. Ser visionário não faz mal a
ninguém. Às vezes, tudo é tão claro, é só colocar no papel (epa, monitor)”, afirma
Loyola Brandão, imortal da ABL.
Quando
começou a escrever “Não Verás País Nenhum”, entre meados dos anos 70 e início
da década de 80, as pautas ambientais e ecológicas ainda não tinham vindo à
tona com força. Com timidez, davam-se os primeiros passos. Sem alarde. Mas
Loyola Brandão recorda-se que lia notícias esquisitas em jornais e revistas
como neve no deserto do Saara, aquecimento solar, doenças estranhas em homens e
animais, degelo dos polos, devastação, a crise hídrica no futuro: o mundo, aos
poucos, ruía.
“E se o Amazonas fosse devastado e transformado em deserto? Uma metáfora? Sim. Pesquisei. Montei um arquivo de quatro mil notícias, reportagens, artigos, livros e livros, tudo e comecei. Deu no que deu”, reflete o escritor, ressaltando que inventou, a realidade lhe seguiu e agora está passando à sua frente, mas não pede licença. “Ninguém sabe o medo que tive de fracassar. Quem ia ler um livro pesado assim? Daí eu entrar com alguma ironia muitas vezes. Literatura, gente, é não ter medo de ousar.”
“Ao escrever o escritor diz: olhe como estamos vivendo. Você acha certo, racional, humano? É isso que você quer? Isso te dá esperança de quê? Aqui está” – Ignácio de Loyola Brandão, escritor
Para
criar “Não Verás País Nenhum”, Loyola Brandão se submeteu a um processo criativo
intenso. Estava empregado na Editora Abril, em 1972, época em que chegou a
esboçar um rascunho de um conto intitulado “O Homem do Furo na Mão”. A ideia
nasceu das conversas que o autor tinha com colegas de redação, sobretudo a
respeito a ditadura militar, regime então em vigor no país, e as nefastas
consequências ao Brasil, com prisões arbitrárias, mortes nos porões e torturas
no calabouço da repressão.
Segundo
o celebrado romancista, o escritor não tem uma função específica e, ao pôr no
papel suas ideias, acaba descrevendo seu país, seu mundo, sua aldeia, sua gente
e a humanidade. O escritor, acredita, ajuda a iluminar um pouco a sombra, o
escuro, tirando-nos da obscuridade. “Ao escrever o escritor diz: olhe como
estamos vivendo. Você acha certo, racional, humano? É isso que você quer? Isso
te dá esperança de quê? Aqui está”, explica o autor de obras como “Acontecer em
Woodstock” e “Zero”.
“Não
Verás País Nenhum” gira em torno de um professor de História que, nas primeiras
décadas deste século, se vê aposentado por insistir no “erro” de publicar os
fatos tais como são, recusando-se a falseá-los, ao mesmo tempo em que os
governantes reescrevem a realidade para atender seus interesses. É como se a
trama fosse baseada no Brasil dos tempos da covid-19, época de notícias falsas,
ou verdades alternativas, para se utilizar de uma expressão cunhada por Donald
Trump, ex-presidente dos EUA.
“Neste
livro, volta e meia, o leitor tem de dizer a si mesmo “É ficção!”, para não ser
engolido e sufocado pelas realidades de hoje e pelas alegorias que povoam as
páginas”, escreve o jornalista Washington Novaes, que comandou uma equipe que
contava com as estrelas do jornalismo Reynaldo Jardim e Jânio de Freitas neste DM, na apresentação de “Não Verás País
Nenhum” lançada em 2012. “Há quem diga que artistas são uma espécie rara da
raça. E são mesmo – pela capacidade de antever, enxergar muito antes que os
simples mortais, graças a sua sensibilidade aguda.”
Loyola de Brandão, como provou em suas obras, tem essa sensibilidade. O título do romance foi extraído de um verso escrito pelo poeta Olavo Bilac, em “A Pátria”, de 1904. “Criança! Não verás país nenhum como este!/ Imita na grandeza a terra em que naceste”, diz o parnasiano Bilac. Cirúrgico? Para a historiadora Heloísa M. Starling, professora da UFMG e autora de texto que está na reedição da Global, sim: “Cortou o verso de Bilac no ponto exato, inverteu bruscamente os principais componentes da nossa projeção utópica de país e revelou que alguma coisa deu muito errado no Brasil.”
Com sete décadas dedicadas à escrita, Ignácio de Loyola Brandão continua levando a sério os conselhos de Graciliano Ramos: é necessário limpar o texto, enxugar os excessos, usar palavras para dizer, não enfeitar. Em “Não Verás País Nenhum”, para referenciar o poeta português Fernando Pessoa, “o inexplicável horror de saber que esta vida é verdadeira” guia todo o romance. Como seu autor, um clássico imortal.
Não Verás País Nenhum
Autor: Ignácio de Loyola Brandão
Editora: Global
Preço: R$ 69,90