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Documentário

'No Coração do Brasil' disseca criatividade do cantor Luiz Melodia

Produção desvenda motivos pelos quais a prosódia melodiana ocupa lugar nobre na canção popular

Poeta urbano: artista jamais aceitou a pecha de sambista, utilizada por empresários para aprisioná-lo em suas amarras - Fotos: Divulgação Poeta urbano: artista jamais aceitou a pecha de sambista, utilizada por empresários para aprisioná-lo em suas amarras - Fotos: Divulgação

Morto aos 66 anos, em agosto de 2017, Luiz Melodia manda a real no início do doc “No Coração do Brasil”: “Se liga no que eu tô falando: é bom se soltar! Enquanto existe música dentro de cada um, existe liberdade.” Soa um convite à dança, ai de mim, de nós dois.

Melodia fez o batuque do Estácio adquirir um sotaque bluesy. Bluesy e funky, ressalte-se. Em grande medida, conforme mostra o filme, isso se deu pelo fato de o artista jamais ter aceitado a pecha de sambista, utilizada por empresários para aprisioná-lo em suas amarras.

Estamos falando sobre um bamba do samba-choro, samba-soul e samba-rock. Daí nos reconforta saber que Melodia tem sido descoberto pelos jovens. Há estímulo para tanto, claro. Sob direção de Alessandra Dorgan (estreia hoje no Cine Cultura), o documentário “Luiz Melodia - No Coração do Brasil” elucida diferença entre ser maldito e rebelde.

A produção desvenda motivos por que a prosódia melodiana ocupa lugar nobre na canção popular. Narrado em primeira pessoa, o filme surpreende: pesquisa de áudio e imagens impecáveis. Não se vê tentativa de mitificar o artista. A música vale mais do que tudo.

Para Dorgan, Melodia era um homem sensível. “Ele foi muito inspirador e muito obstinado. E o que eu costumo dizer, foi um menino muito sonhador. Eu acho que isso está impresso no filme. Esse sonho, essa força do sonho, moveu ele por toda a carreira”, descreve a diretora.


		'No Coração do Brasil' disseca criatividade do cantor Luiz Melodia
Pérola negra: Melodia fez batuque do samba ganhar sotaque bluesy e funky. Foto: Divulgação


Observador atento do violão paterno, Luiz Carlos dos Santos respirou música desde pequeno. Nasceu em 7 de janeiro de 1951. O pai, Oswaldo Melodia, tocava nos bares do Estácio — berço do lendário sambista Ismael Silva. Mas queria um destino diferente para o filho. Gostaria de vê-lo doutor, longe da noite e, se possível, afastado da esbórnia.

Melodia tinha voz aveludada. Seu vibrato, perolado e requintado, encantou o Brasil. Até o fim, o qual se anunciou precoce, ele seguiu lotando teatros. Câncer o matou cedo. Que se lasque o câncer. Melodia quebrou a cisão morro-asfalto, estraçalhando-a e jogando-a para longe, porque fazia música do morro no asfalto e vice-versa. Sabia-se artista universal.

Dorgan conta que se pegou diante de um dilema quando produzia seu longa-metragem. “A partir do momento que enxergamos o quanto Melodia sofreu tentativas de enquadramento, silenciamento e de ser colocado num lugar de marginalidade, a gente entendeu que o Luiz iria contar a própria história em primeira pessoa”, explica a diretora ao site do MinC.

Ou seja, vida revisitada pela memória de Melodia. A trilha sonora, elemento fundamental no doc, capta a essência do artista. “Pérola Negra”, “Juventude Transviada” e “Mistério da Raça” se casam com as imagens e o ritmo imprimido pela montagem, para embalar e traduzir a poesia congênita dessa maravilha contemporânea denominada Luiz Melodia.

Os versos apresentam imagens como “beijos demorados, afirmados, não podemos mentir”, de “Vale Quanto Pesa”, ou “tente entender tudo mais sobre o sexo”, da canção “Pérola Negra”. Ambos revelam poética especial, de um cronista urbano, um poeta. Um poeta que via vitrines, boutiques, só não via quem não queria, como em “Onde o Sol Bate e se Firma”.

Ao mesmo tempo, era alguém muito elegante com as pessoas e com sua estética. Pensei: ele tem tantas outras camadas” Alessandra Dorgan, diretora

“Depois de entender que ele foi um cara taxado, rotulado como maldito e difícil, e entendendo a natureza dele, de homem elegante, sensível, poeta e persistente, que sabia muito bem o que queria… Mas, ao mesmo tempo, era alguém muito elegante com as pessoas e com sua estética. Pensei: ele tem tantas outras camadas”, afirma Dorgan, ainda ao MinC.

Artista de vocação contracultural, o poeta Waly Salomão pirou ao ouvir Melodia pela primeira vez. Waly resolveu, então, subir o morro para conhecer esse jovem músico que seduzia os intelectuais cariocas. O autor de “Me Segura qu'eu Vou Dar um Troço” apresentou o pupilo aos tropicalistas, incluindo Torquato Neto, e este enlouqueceu.

Auge

Logo depois, Melodia chegou até a diva Gal Costa. Foi gravado por ela. Na versão tropicalista, a música “Pérola Negra” traz a guitarra de Lanny Gordin, numa acentuação mais Janis Joplin do que aquela gravada no disco melodiano de mesmo nome publicado em 1973, que é blueseada e, portanto, meio BB King, meio Taj Mahal. Duas obras-primas.

Antes disso, todavia, a cantora Maria Bethânia o ajudou. Ela gravou o samba-canção “Estácio, Holly Estácio”, no disco “Drama – Anjo Exterminado”, lançado em 1972. Entre este ano e o seguinte, Melodia viveu o sucesso caudaloso de seu elepê “Pérola Negra”. O auge, por sua vez, ocorreu com a “Juventude Transviada”, trilha de uma novela na TV Globo.

Entrou em decadência comercial nos anos 1980, mas voltou à cena ao regravar “Codinome Beija-Flor”, de Reinaldo Arias, Cazuza e Ezequiel Neves. Da mesma forma que Jards Macalé e Sérgio Sampaio, Melodia foi classificado pelos empresários do disco como “maldito”. “Se você marca touca, eles te engolem e fazem um bolinho”, afirma no doc.

Como o poeta Arthur Rimbaud, acreditava que a rebeldia era parte essencial da vida. “Eu sou um homem de botequim”, confessa, assustado com a fama repentina. “No Coração do Brasil” nos mostra que o artista do Estácio brigava para que não rotulassem-no nem colocassem-no em gavetas. Underground? Não, ele só queria ser dono de sua arte.

NO CORAÇÃO DO BRASIL

Estreia hoje, às 14h30

Cine Cultura

R$ 20 (inteira)

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