Desde a década de 90, a cantora Fernanda Abreu, 62, se dedica a remodelar a linguagem do pop brasileiro. Quando lançou o disco “Sla Radical Dance Disco Club”, em 90, a artista trouxe ao público brasileiro a sonoridade da pista e o clima da noite. Trinta e três anos se passaram, quase trinta e quatro, e a obra se mantém jovial, assim como a própria Fernanda, que se apresenta neste domingo, 7, na 15ª Edição do Festival Gastronômico de Pirenópolis.
Entre 17 e 18 anos, esteve matriculada no curso de Arquitetura, na UFRJ. Como não suportava cálculo, cursou por três anos Sociologia numa outra universidade, mas também conceituada: PUC. Faltando um ano para se formar, entrou para a Blitz. Ali se graduou, obteve título de mestre e depois se doutorou no mundo da música, ensinamentos que lhe foram úteis quando o grupo acabou e a carreira solo começou a ser planejada, a partir de 86.
Fernanda reaparece, quatro anos depois, com “Sla Radical Dance Disco Club”, cujo disco tinha a presença de dois DJs que bombavam à época nas pistas: Memê e Marlboro. Eles foram responsáveis pela batida que forjaria o funk carioca nos anos seguintes. Em 92, lançou “Sla 2 - Be Sample”, no qual faz apropriação de “Jorge da Capadócia” - não só aceita pelo ídolo Jorge Ben, como eleita por ele a melhor regravação de música da lavra jorgebeniana.
Ainda nos anos 90, com o disco “Da Lata” (1995), terceiro da carreira solo, fez algumas das canções que definiram o samba-funk, caso de “Veneno da Lata” e “Garota Sangue Bom”. Nos álbuns “Raio X” (1997) e “Entidade Urbana” (2000), preparou-se para adentrar os anos 2000, quando lançou “Na Paz” (2004) e gravou o primeiro disco ao vivo da carreira, no projeto MTV. Antes, rejeitara convite dessa natureza por julgar não ser momento oportuno.
Em todos os trabalhos, Fernanda Abreu mira o futuro, torna cada vez mais robusta sua “abreugrafia” e, por causa de drama familiar, entre 2000 e 2010, precisou se afastar dos estúdios. Uma década separa o “MTV Ao Vivo” do afetuoso “Amor Geral”, disco que trata do amor em suas diferentes perspectivas - e não só da faceta romântica da relação. No dia em que se anunciou o lockdown no Rio de Janeiro, decidiu fazer o DVD “Amor Geral”, embora público tenha sido forçado deixar o Teatro Imperator, onde gravou o show.
Nesta entrevista, Fernanda Sampaio de Lacerda Abreu reflete sobre carreira solo, analisa o suingue na música brasileira e tece opiniões a respeito da cultura brasileira. Vascaína ilustre, lamenta futebol pátrio, “com estupradores, sonegadores de impostos”. Fala ainda sobre comportamento e juventude, anos 80 e amor após os 50 anos. A seguir, leia a íntegra:
Diário da Manhã - Qual é a sua principal reflexão sobre os mais de 30 anos de carreira solo?
Fernanda Abreu - Minha principal reflexão sobre esses 30 anos de carreira solo, não só de carreira solo, mas desde a época da Blitz, em 82, 83, é que pra fazer uma carreira artística sólida e longeva é preciso fazer boas escolhas, estar inteira e verdadeira na sua produção. Ter muita inspiração e disposição. Construir com calma essa trajetória. Isso é o mais importante. E ter, claro, muito amor pela música e pela dança. Saber trabalhar em equipe e gostar de trabalhar em equipe. Ser generosa e ter gratidão com as pessoas que, de alguma maneira, fortaleceram e fortalecem e contribuem pra carreira da gente. Isso é importante. As conquistas que tive nesses anos todos sempre foram importantes pra mim. E eu agradeço todos os parceiros que tiveram próximos: compositores, músicos, produtores, gravadoras, designers, maquiadores, figurinistas, artistas gráficos, artistas plásticos, fotógrafos e, especialmente, o público - que acompanha minha carreira nesses anos todos.
Me lembro de ter nove anos de idade e imitar o Michael Jackson quando ele fazia parte do Jackson 5 ainda criança. A partir dali, tem toda a história do funk americano, do funk brasileiro e do samba Fernanda Abreu, cantor
DM - Você sempre entendeu que o suingue mora na negritude. Como tomou essa consciência?
Fernanda - Olha, desde que me entendo por gente, eu danço. E a música entrou na minha vida por essa veia da dança. Tem muito a ver com a música negra, pelo menos pra mim. Me lembro de ter nove anos de idade e imitar o Michael Jackson quando ele fazia parte do Jackson 5 ainda criança. A partir dali, tem toda a história do funk americano, do funk brasileiro e do samba. Sempre tive uma relação muito grande com a música negra. É minha maior referência.
DM - Como essa compreensão te ajuda a refletir sobre a sociedade brasileira?
Fernanda - A sociedade brasileira é formada pelos nossos povos originários e depois, mais tarde, pelos europeus que trouxeram os negros da África pra escravizá-los. E os negros foram importantes pra formação da sociedade brasileira em vários setores. Não só na cultura, como na religião, na gastronomia, na culinária. É infinita a contribuição dos negros pra cultura brasileira - especialmente pra música. Você olha a música brasileira e você vê realmente ali traços da cultura negra em praticamente todos os nossos gêneros.
DM - Por que, em sua avaliação, nossa cultura é tão fascinante mundo afora?
Fernanda - A cultura brasileira é o grande orgulho que nós temos e que nós exportamos. A gente tinha uma outra vertente brasileira, que era o futebol, mas que hoje em dia, infelizmente, a gente já não pode se orgulhar tanto. Não somente da parte esportiva, depois daquela derrota por 7 a 1, mas especialmente do que significa hoje em dia a imagem do jogador, com estupradores, sonegadores de impostos. Estamos numa situação bem complicada lá fora. Salvo, claro, algumas exceções, como Vini Jr - que passa um perrengue danado de racismo. Tem o Richarlyson, também. É um cara que passou por muito preconceito. O Brasil precisa avançar contra um falso moralismo, uma hipocrisia generalizada, especialmente dos homens brancos, héteros. Mas não tô generalizando, não. Acho que a gente precisa melhorar. O caminho é longo, mas o que importa é a gente estar na estrada certa. Se a gente pegar esses atalhos desprevenidos, como no governo Bolsonaro, aí são anos e anos de retrocesso.
Voltaram as políticas públicas, voltou a importância de se valorizar a arte e a cultura brasileiras. Diminuiu o desemprego. A valorização mesmo do que é importante e tudo o que a gente puder expurgar - e do que foi fomentado naquele governo anterior, como armamento, homofobia, racismo, misoginia e violência Fernanda Abreu, cantor
DM - O que tem percebido no Brasil de 2022 pra cá? Melhoramos ou ainda precisamos melhorar?
Fernanda - O Brasil sempre precisa melhorar. Agora, diante do governo que a gente tinha anteriormente, foi um avanço muito grande. Voltaram as políticas públicas, voltou a importância de se valorizar a arte e a cultura brasileiras. Diminuiu o desemprego. A valorização mesmo do que é importante e tudo o que a gente puder expurgar - e do que foi fomentado naquele governo anterior, como armamento, homofobia, racismo, misoginia e violência. Então, a gente retomou um lugar que já tinha, mas a gente ainda precisa melhorar muito, especialmente a educação, que é fundamental. A educação é o ponto de partida pra gente tentar diminuir a desigualdade, que é o grande gargalo brasileiro. É a ganância de poucos ricos, milionários, bilionários, em prol de uma população gigante, com muita dificuldade de oportunidade e de uma vida com dignidade.
DM - O funk ainda é alvo de comentários preconceituosos. Por que esse tipo de coisa persiste?
Fernanda - São momentos diferentes do funk. Quando tive o primeiro encontro com o funk, em 89, e o que eu vi ali nos anos 90 e 2000 era um preconceito e uma discriminação grandes junto ao racismo, porque era uma música de preto, pobre e favelado. Depois, o funk - cada vez mais - ganha o mainstream. Eu acho que hoje existe um preconceito por causa de letras muito sexualizadas. Agora, o funk mesmo, que é construído e criado nas favelas do Rio e nas periferias do Brasil, é uma música que representa aquelas comunidades. Aquelas letras falam das vivências das pessoas. Então, se tem sempre que observar que o funk não foi um movimento criado por gravadora, empresário, produtores de música. Foi um movimento autêntico, muito potente, muito vigoroso - criado nas favelas do Rio de Janeiro. Depois, claro, se expandiu pelo Brasil, pelas periferias. É uma música popular, né? Uma música feita por uma galera cada vez mais forte, com cada vez mais voz. Graças a Deus.
DM - Seu disco “Amor Geral”, lançado em 2016, traz reflexões a respeito de momentos complicados da vida que você então passava. Por que funciona expurgar a dor na música?
Fernanda - Ao mesmo tempo em que é inspirado no meu momento pessoal, o “Amor Geral” fala pra coletividade. Não é um disco que fala de amor romântico só. Ou de questões minhas, pessoais. Fala da possibilidade de se ter uma sociedade com um convívio mais generoso, tolerante e pacífico, onde o amor é a resposta mais poderosa nesse mundo de ódio que a gente vive.
DM - Usava-se mais drogas nos anos 80 ou se usa mais hoje?
Fernanda - Os anos 80 foram maravilhosos. Era o final da ditadura, ali em 85. Era o início mesmo de uma liberdade maior pra juventude. Foi o momento em que as bandas começaram a aparecer. A juventude daquela época começou a ter voz. Eu nunca me droguei. Sempre fui uma bailarina. Bailarina não se droga, a princípio. Claro, pode ter alguma exceção. Não acho que nos anos 80 as pessoas se drogavam mais do que se drogam hoje. Eram drogas diferentes. Não tinha, por exemplo, droga sintética, como tem hoje. Agora, teve um boom da cocaína, lógico. A maconha sempre teve ali naquele lugar dela, desde sempre. Vai ser assim até ser liberada. Não faz muito sentido, a proibição. Muitos lugares já liberam o uso não só medicinal, como recreativo da maconha. O álcool é uma droga que deveria ser, de uma certa maneira, olhada como saúde pública, assim como as outras drogas. Então, sinceramente, eu não vejo tantas diferenças, não.
DM - Qual é a vantagem da carreira solo em comparação aos anos de Blitz?
Fernanda - A Blitz foi o início da minha carreira. A Blitz foi fundamental pra minha carreira solo. Na Blitz, aprendi muita coisa. Aprendi o relacionamento com gravadora, com executivos, com jornais, rádios, imprensa, montagem de show, de equipamentos, luz, som, palco. Aprendi muito, muito, muito com a Blitz. E o principal: a gente teve um sucesso estrondoso. Então, eu passei por uma situação de muito sucesso que foi importante pra quando comecei minha carreira solo, porque não tinha muita expectativa, ansiedade. Já tinha vivido um sucesso estrondoso. Queria construir uma carreira solo com calma, mas muito sólida e consistente. De uma certa maneira, a Blitz me deu esse presente pra eu construir minha carreira solo de uma forma tranquila, muito consciente e muito orgânica - já conhecendo muita coisa do business.
DM - Dos discos que gravou, qual é o seu favorito?
Fernando - Ah, sinceramente, não tenho disco preferido. Quando coloco todos os meus discos no Spotify, eu gosto do áudio, eu gosto dos arranjos, gosto da minha voz, acho as letras legais até hoje. Realmente, me orgulho do meu legado até agora. Não tenho nenhum disco ou trabalho que eu possa me arrepender, ter vergonha ou achar que eu poderia ter feito diferente.
DM - O DVD “Amor Geral” foi gravado no dia em que saiu decreto da pandemia. Como foi repassar momentos da carreira num contexto absolutamente extraordinário?
Fernanda - Ah, o DVD “Amor Geral” foi uma loucura, porque foi no dia lockdown, no Rio de Janeiro, o público já tava dentro do teatro. A gente tinha passado três dias montando o teatro, com a equipe inteira. Uma equipe com mais de 50 pessoas. Tomei a decisão quando chegou no camarim uma hora antes do show começar e uma menina falou que o governador Wilson Witzel ia fechar o equipamento, o Imperator, que é o Centro Cultural João Nogueira, onde eu tava gravando o DVD. Juntei a equipe e decidi fazer o show mesmo sem o público. Infelizmente, o público teve que ir embora, mas ainda bem que tomei essa decisão de gravar o DVD assim mesmo. E, de uma certa maneira, foi engraçado, porque acabou sendo a primeira live da pandemia - mesmo que de forma não proposital. A gente não sabia quanto tempo ia durar aquela pandemia ou o que ia acontecer. Foi importante. Foi uma boa decisão que a gente toma ali na hora, mas que, no final das contas, não me arrependi.
DM - Como foi descobrir um novo amor depois dos 50 anos?
Fernanda - Ah, foi maravilhoso, né? Fiquei casada por 27 anos. E me apaixonar aos 50 anos foi muito bom. Me trouxe uma dimensão diferente do amor. A gente tem uma ideia de que as pessoas mais velhas não se apaixonam ou não têm uma relação de amor tão intensa, como um jovem. Mas isso não é verdade. Só quem chega lá, nessa idade, sabe que o amor e a paixão são pro resto da vida. É igual aprendizado: se aprende até o último momento.
DM - Com as filhas já crescidas, como anda seu relacionamento com elas?
Fernanda - Eu tenho uma relação maravilhosa com minhas filhas. Ensinamento e aprendizagem mútuas. São meninas ótimas. Fizeram faculdade. Descobriram seus caminhos. Trabalham. São feministas. São generosas, amorosas, talentosas e inteligentes. E bonitas. Realmente, tenho sorte de ter as filhas que tenho. Muito orgulho. É muito bom. Somos próximas, assim como meu ex-marido também. A gente fez uma parceria muito longa de trabalho e família. Na minha vida, eu só cultivo o amor.
DM - Você ficou anos sem se apresentar aqui. Como percebe o público daqui em seus shows?
Fernanda - Fiquei um tempo sem me apresentar em Goiás, mas, no ano passado, me apresentei. Fui muito bem recebida. Tenho certeza que esse show em Pirenópolis será maravilhoso. A música une as pessoas. As pessoas gostam de cantar, gostam de dançar, gostam de se comunicar através da música. Tô com muita expectativa. Acho que vai ser um show maravilhoso.
DM - O que Pirenópolis pode esperar de sua passagem pela cidade?
Fernanda - Ah, Pirenópolis pode esperar um show super animado, com muita dança, com muita música e sempre eu vou dar o melhor de mim no palco para o público. Tô com bastante expectativa. Tô louca pra chegar em Pirenópolis, uma cidade muito especial.