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'O Céu Implacável' apresenta sintaxe sensível ao unir lírico e épico

Ao Diário da Manhã, escritor fala sobre novo romance e reflete sobre escolhas estéticas

Prosa delicada: escritor se notabiliza por romances que seguem tradição de Carlos Drummond de Andrade e Raduan Nassar - Foto: Adriana Vichi/ Cia das Letras Prosa delicada: escritor se notabiliza por romances que seguem tradição de Carlos Drummond de Andrade e Raduan Nassar - Foto: Adriana Vichi/ Cia das Letras

Ele sabe, ao ouvir o som do latido, que o cão do vizinho já tem uma certa idade. Sabe, ao escutar a sintonia do pássaro, se o canto vem de um canário-terra, um sanhaço, um estorninho. E sabe, ao observar o arranjo das nuvens no céu, que a chuva não irá demorar. Sabe até se os aviões estavam subindo aos ares ou, veja você, descendo ao aeroporto.

Essas descrições, pinçadas do romance “O Céu Implacável” (Alfaguara, R$ 84,90), publicado pelo escritor João Anzanello Carrascoza, sintetiza a vida do narrador, que não tem nome. Mas sabemos que ele é escritor, passou por dois casamentos (desfeitos, para a tristeza dele) e tem filhos frutos das duas relações - um homem mais velho e uma menina ainda nova. Até as palavras, antes fonte de galhardia, agora envelhecem e, como seres viventes, morrem.

Provocavam-lhe ainda desarranjo a poeira vermelha, o pólen das flores, a fumaça gerada pelo incenso, a fragrância de alguns perfumes (sobretudo o Carolina Herrera, não por acaso o que a primeira mulher gostava de usar). Além de alérgico às fake news, sente incômodo abdominal quanto come frutos do mar, amendoim ou macarrão. No entanto, lamuria-se, por não conseguir combater o mal-estar da solidão que pairava em cima da colcha na qual, anos atrás, dormia o filho mais velho e, de uns tempos pra cá, vinha sendo onde repousava filha.

Se no livro anterior, “Inventário do Azul” (Alfaguara, R$ 69,90), o leitor vê o crescimento dos filhos e acompanha o narrador cavucando as memórias do passado, ao recordar-se dos pais e das miúdas da vida, aqui as coisas viram de cabeça para baixo: o personagem se tranca em casa. Aos sessenta, está cheio de dúvidas pela possibilidade da finitude. E evoca Jorge Luis Borges: “os espelhos e as cópulas são abomináveis porque reproduzem os seres humanos.”

Diálogo literário

O cenário - sufocante - dialoga com três criações literárias. A primeira delas, “Jogo de Amar” (Todavia, R$ 64,90), de Edgard Telles Ribeiro, narra a história de um escritor que assume as vestes do personagem e sobe em cena. Há décadas, o sujeito vive num apartamento com a esposa e às voltas com textos que nem sempre domina, nem mesmo deseja dominá-los. Persegue a primeira frase, uma frase desvinculada de hipóteses ou teorias, como nos diz.

Seguindo por uma toada parecida, há o conto “Domingo Medonho”, publicado em junho de 2020 na revista “Piauí” pelo escritor Reinaldo Moraes, o cara que teceu o textão tóxico-tarado conhecido como “Tanto Faz” e a epopeia do malandro chamada “Pornopopéia”. A história, se você não sabe, se passa num apartamento. Cenário claustrofóbico, domingo esquisitão, vírus pandêmico e verme fascista “cagando no seu dia”.

A terceira obra, por fim, não transcorre durante a pandemia. Seu enredo desenvolve-se no sopro final da ditadura militar, instaurada no País em 64. Da lavra do escritor Sérgio Sant´Anna, “Um Romance de Geração” retrata o encontro fortuito entre Carlos Santeiro, homem das palavras, e uma jornalista que deseja entrevistá-lo - afinal de contas, ele andou lançando uns livros que fizeram sucesso. O bate-papo acontece no apartamento de Santeiro. Um quadro conciso (no formato de texto dramático) que revela as dúvidas de uma geração.

Ao DM, João Carrascoza diz que “Inventário Azul” narra a formação do narrador. “É um romance que mostra a formação do sujeito. E segue depois, na sequência, até a velhice”, diz o romancista. Seria, então, o segundo título uma espécie de romance deformacional, por assim dizer? Porque, olha só, o personagem é um escritor e, na continuação do arco narrativo, o cara está se deformando à medida que o tempo desfaz-o como gente.

“Ele fez o caminho de Santiago duas vezes. Aparece no ‘Inventário do azul’. Gosta de andar, apesar de ter problemas na coluna, de está ficando velho, não consegue se mexer direito. Tem lá suas obsessões de saúde, mas a janela, naquele momento, é a única coisa possível. Era o ponto de vista de um observador de mundo. Como foi o homem um tempo na caverna, olhando pela sua janela, a abertura de sua cova de sua, de sua lapa”, explica Carrascoza.

Sem abdicar do olhar delicado, o narrador observa os avós e os pais, pessoas que ele define como “ontem”. Misturam-se no mesmo espaço-tempo - ele e outros velhos -

e, ao mesmo tempo, com as pessoas chamadas de “amanhã”. “E, assim, estão todos, queiram ou não, fazendo e refazendo o mundo - às vezes de forma amena, às vezes bruta”, reflete o narrador, no capítulo “Três Gerações”. Mais à frente - em “Dois Verbos” -, atesta que “era preciso drenar as mágoas antigas, o sangue das feridas mortas, a lama do desencanto”.

Sentindo-se tocado

Nascido em Cravinhos (SP) no ano de 1962, Carrascoza diz que não consegue escrever nada sem se sentir tocado. Sua prosa - emocionante, lírica e intensa - guarda em si o melhor da tradição consagrada pelo poeta Carlos Drummond de Andrade. Em matéria de fluidez textual, encontra na sintaxe - maneira na qual as palavras são dispostas nas frases - um brilho narrativo capaz de evocar o escritor Raduan Nassar, cujo romance “Um Copo de Cólera” é uma obra que lhe pauta o caminho. Raduan mistura o lírico com o épico.

“Num livro que escrevi anteriormente, que faz parte da ‘Trilogia do Adeus, chamado ‘Caderno de um Ausente’, eu conto a história do sujeito que, num determinado momento, diz que o silêncio é a linguagem original. Mas, como a gente não conseguiu entender a sua grandeza, a gente teve uma queda. E a queda é a palavra. Ou seja, a palavra sempre será menos do que o silêncio, mas é o que a gente tem”, afirma Carrascoza, vencedor dos prêmios Jabuti, Biblioteca Nacional, APCA e Candango e também elogiado por Alfredo Bosi.

Por isso, Carrascoza procura trabalhar a palavra buscando um certo ritmo, uma certa musicalidade. “É para tentar cortar o silêncio para dizer aquilo que a gente sente”, revela. João Anzanello Carrascoza transitou, por anos, pelo conto - é autor de “Hotel Solidão” (1994) e “O Vaso Azul” (1998). Publicitário, mestre e doutor na área, tornou-se um dos autores mais importantes também da narrativa de fôlego. Sua prosa é sóbria e, tomando a permissão drummondiana para si, acreditava que o cotidiano revela boas doses de poesia.

O Céu Implacável

Autor: João Anzanello Carrascoza

Editora: Alfaguara

Gênero: Romance

Preço: R$ 84,90

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