Vou te confessar: eu estava lá no Oscar Niemeyer. Vi Titãs, aquele encontro foda deles. Aquele encontro foda deles com formação original, tá lembrado? Era um volume altíssimo, como – aliás – deve ser um bom rock: riffs distorcidos, grooves martelantes, andamento reto.
Tal qual a língua dos Rolling Stones, a minha também se achou no direito de pular pra fora da boca. Só que sem nenhuma vocação à lascividade. Me percebi suadaço. “A vida até parece uma festa”, vocaliza Paulo Miklos, abrindo o show-encontro. “Diversão”, lançada no elepê “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas”, de 87, daria o tom do concerto até o fim.
Leio Arthur Dapieve falando que música não é apenas entretenimento: é arte e consciência sociopolítica, ainda que não haja essa pretensão escancarada em certos sons – longe de ser, ressalte-se, o caso dos Titãs. Quando Elvis Presley cantou aquelas onomatopéias incompreensíveis, manifestava-se contra os costumes da sua época. Logo, dizer que os Beatles se rebelavam me parece ser lógico ou que, entre 67 e 70, Hendrix não fazia outra coisa a não ser reclamar do belicismo estadunidense, como se sua Stratocaster militasse pela paz.
A partir do momento que atinge as massas (o que consegue pelo Spotify, LPs, K7 e CDs), a música vira um poderoso instrumento de transformação social. Jamais uma arte impactou a forma como falamos, transamos, nos vestimos, nos despimos, nos comportamos, ou a maneira com que protestamos contra governos e instituições, como a música.
Beatles, Stones, Who, Zeppelin, Ramones ou Clash foram as melhores bandas de todos os tempos da última semana. Nos anos 80, o gênero maldito se familiarizou com a língua portuguesa – e produzimos Barão, Paralamas, Ira!, Legião, Plebe, Camisa e Titãs. Cada grupo amplificou sua mensagem para que o país pudesse escutá-la naquele momento histórico.
A novidade é que essa música já teve muitos intérpretes ao longo da vida, mas pela primeira vez a gente vai gravar um registro comigo” Tony Bellotto, guitarrista
“Microfonado” ulula na caixa de som. Titãs, cara, é dádiva irrefutável da nossa música! Enquanto escrevo, penso que poucas bandas na história acenam tão bem para o futuro quanto os paulistanos – agora reduzidos a trio. E nem por isso, ressalvo, estão desenergizados. Mal terminou o festival Lollapalooza, lá foram Branco Mello, Sérgio Britto e Tony Bellotto atrás de um novo projeto, que foi criado para ser apresentado em teatros pelo Brasil afora.
Dessa vez acompanhados pelos músicos Mário Fabre e Beto Lee, entraram no estúdio. Gravaram hits e recriaram canções do disco “Olho Furta-Cor”, publicado em 2022. Foi uma obra pouco ouvida por causa da turnê “Encontro”. Ali, como em parte considerável da discografia titânica, nos deparamos com composições que mereciam – sim – nova chance.
Saem amplificadores, alto-falantes e caixas de retorno, entram violões, baixo acústico, bateria. Os únicos cabos no estúdio são dos microfones. Imagine, agora, tal formato estético-musical a serviço do arsenal sonoro-poético dos Titãs. Bem, me limito a te dizer isto aqui: vá ao streaming, ouça o novo disco e, enlouquecido, se deixe levar pela música.
Tony diz que “Microfonado” abre com uma música “enigmática e poderosa”, um talismã – como a define – desde 82. “A novidade é que essa música já teve muitos intérpretes ao longo da vida, mas pela primeira vez a gente vai gravar um registro comigo”, conta. O ineditismo é reforçado ainda pela versão de “Marvin (Patches)”, agora na voz de Sérgio.
Celebração
Contudo, o disco não se resume a versões de velhos hits. Mas, se fosse, é certo que agradaria aquele fã das antigas. É celebração – isto sim – do pop rock brazuca feito nas últimas quatro décadas. De forma matadora, começa com o popstar Ney Matogrosso sendo chamado pelo guitarrista-cantor para dividir o microfone na faixa “Apocalipse Só”, de “Olho Furta-Cor”. O timbre melodioso de Ney conversa com o piano intimista. “Desde o comecinho da banda eu fiquei de olho neles”, lembra Ney.
Em seguida, Branco anuncia que a cantora Preta Gil irá acompanhá-los na música “Como é Bom Ser Simples”. Os versos ilustram bem o momento da artista: “como é bom ser simples/ e deixar tudo de lado/ para viver despreocupado/ dando adeus ao meu passado”. “Depois de assistir a um show, quando tinha 10, 11 anos, virei tipo groupie”, tieta a carioca.
É uma versão de música gringa. Eu e Nando Reis tínhamos o hábito de fazer versões gringas quando éramos jovens. Nos apoiamos numa tradição da música brasileira” Sérgio Britto, tecladista
Identificado com a vocalização punk do clássico “Polícia”, Sérgio explica a origem do hit atemporal “Marvin”. “É uma versão de música gringa. Eu e Nando Reis tínhamos o hábito de fazer versões gringas quando éramos jovens. Nos apoiamos numa tradição da música brasileira”, relata, citando “No Woman, No Cry”, vertida ao português por Gilberto Gil.
Quem acompanha os Titãs nessa canção é o gaúcho Vitor Kley, descrito por Sérgio como bom instrumentista. “Parece que nasci conhecendo Titãs, pelos meus pais escutarem. É uma banda que já vem no DNA. Que bom que existem os Titãs”, comemora Vitor, emocionado. Posteriormente, Branco assume os vocais em “A Melhor Banda de Todos os Tempos da Última Semana”, num timbre à la Joe Cocker na baladona soul “With a Little Help From My Friends”.
Cyz Mendes, vocalista da banda potiguar Plutão Já Foi Planeta, canta junto ao piano a música “Um Mundo”. Os Titãs aproveitam ainda para recriar a balada “Porque Eu Sei que é Amor”, gravada em “Sacos Plásticos”, de 2009. Com notas menores, a melodia se derrete na voz doce da paraense Bruna Magalhães. “Eu os escutava desde os 5 anos de idade. Foi ainda mais especial porque sempre me identifiquei com essa música”, afirma a cantora.
Desenvolvido por Rick Bonadio e Sergio Fouad, “Microfonado” chega à reta final com um hino – mas não um hino empoeirado. Embora desplugado, “Cabeça Dinossauro” carrega a fúria concretista do mais raivoso disco da nossa música, numa versão dessa vez rap quase gangsta sob comando do carioca Major RD. “Essa música é muito importante pra mim”, afirma o rapper.
Os Titãs se transmutam, suas letras retratam país nocauteado, um país ainda sem autoestima, vice país, vice alegre, viceversa. É, Leminski, é a tal sina da consciência versus capitalismo selvagem. Torçamos para que venham ao Rio Vermelho ou Teatro Goiânia.
MICROFONADO
Midas Music
Titãs
Faixas 18
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