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Paulo Leminski revive em disco que reveste sua poesia com sons siderais

Até agora, sem dúvida, obra figura dentre melhoras deste ano — pois ainda é necessário prestamos atenção na força do verso sintético desse poeta

Vitor Ramil se reconectou aos versos leminskianos durante a pandemia - Foto: Marcelo Soares/ Divulgação Vitor Ramil se reconectou aos versos leminskianos durante a pandemia - Foto: Marcelo Soares/ Divulgação

Voltar às raízes paranaenses baqueia, acordo bemol, fica tudo sustenido, epifania leminskiana rebobinando emoções pretéritas. Voltar às raízes paranaenses multiplica maluquices, como se eu quisesse evocar no fluxo da consciência o que ali vivi e senti.

Pois Paulo Leminski, o Rimbaud curitibano com físico de judoca sideral, reaparece no disco “Mantra Concreto” pela voz do cantor Vitor Ramil, 62. Viajo pela combinação entre erudito e mesa de bar, entre linguagem malandra e discurso sintético, entre vivências beatniks e filosofia zen — em sons que se convertem em profissão de febre à poesia e à música.

“A música é o destino natural do ser humano”, filosofa Leminski, sustentando tese segundo qual o Sistema Solar ressoará barulhos pelo universo. Essa fala foi pinçada da canção que abre o álbum, “De Repente”, cujos versos leminskianos são costurados por violão folk.

Para bom entendedor, meia palavra raspa, diria a crítica Leyla Perrone-Moisés. Leminski entendia que a melhor poesia de sua geração não estaria nos livros, mas sim nos discos. No Brasil, os cantores-poetas Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento e Cazuza são amados. E por necessidade básica, reflitamos, os poetas devem ser festejados.

Também devem ser, penso eu, motivos de paixão. O polilingue polaco-paranaense concluiu que isso ocorreria pelo fato de os povos precisarem da loucura para respirar. Os poetas, acreditava, dizem algo que precisa ser dito. E, no entanto, advertia: não são seres de luxo! Nem excrescências ornamentais. São, na verdade, necessidades produzidas pela sociedade.

Tinha lá suas razões, o Leminski. Não bastasse ter deglutido o pau-brasil oswaldiano e educado-se na pedagogia da poesia concreta (abrasileirou o haikai, além de tudo), esse Bashô do Pilarzinho era o lírico que associava esquecimento e chuva no telhado à felicidade. Ou seja, refrescava nossa horta lírica e, inquieto, batalhava poesia altamente comunicativa.

Ramil conta que, isolado em Pelotas (RS) durante a pandemia, religou-se aos versos de Leminski. Retomou convivência com essa poesia críptica folheando a antologia “Toda Poesia”, publicada pela Companhia das Letras, em 2013. O poema “Sujeito Indireto” lhe despertou o aspecto musical dos versos leminskianos. “Minha imunidade baixou”, diz.

Em seguida, virou canção e, em três semanas, puff, havia treze ideias, treze poemas, treze canções. Assim, de forma coesa e rápida, nasceram as faixas “De Repente”, “Teu Vulto”, “Administério”, “Amar Você”, “Profissão de Febre”, “Palavra Minha”, “Um Bom Poema”, “Anfíbios”, “Será Quase”, “Sujeito Indireto”, “Minifesto”, “Caricatura”, “Mantra Concreto”.

Vitor Ramil leminskizou seus pensamentos. “Do som agudo mais sideral e cristalino descemos aos tremores de terra mais cavernosos, capazes de modular a voz e tudo mais que estivesse em volta”, explica, em texto que apresenta a obra, no qual diz que “regularidade horizontal e geométrica dos violões” levou-o a acentos “em tempos aleatórios”.


		Paulo Leminski revive em disco que reveste sua poesia com sons siderais
Capa do disco 'Mantra Concreto': designer de Felipe Taborda. Marcus Vinícius Beck

Tanto que ele próprio deu nome ao álbum a partir de poema cujo título é sua criação. “Muitos poemas de Leminski não possuem título. Os versos de ‘Mantra Concreto’ remetiam à poesia concreta, que influenciou o poeta. Seu tema, de prece e pressa, com pinceladas entre o mítico e o espiritual, me fez pensar em mantras e no caráter mântrico de muitas das minhas composições, que ganhavam concretude com aquela poesia clara e rigorosa”, afirma.

Desde o início, Ramil gravitou em torno da personalidade leminskiana. O disco, fruto também dos co-produtores e músicos de base Alexandre Fonseca e Edu Martins, reproduz, com enorme fidelidade, a alma do poeta: a cadência discursiva, o rio de palavras, a verborragia desatada. É cornucópia de sons e timbres, mantra concreto de boa poesia.

Na sétima canção, chega-se a “Um Bom Poema”. “Um bom poema leva anos”, vocaliza Ramil, cuja voz se entrelaça ao violão que sussurra slide correndo pelo seu braço. Em termos de arranjo, nada é como harmonia barroco-jazzy construída pelo guitarrista Toninho Horta em “Minifesto”. “Morra calma desta tarde”, canta, com resposta instrumental logo atrás.

Violonista habilidoso, Ramil diz que nunca tocou junto com os músicos que gravaram o trabalho, mas o resultado foi como se tivesse se reunido com eles na casa de Leminski no Pilarzinho, em Curitiba, onde ‘qualquer som, qualquer um’, pudesse ser a voz do poeta. Inclusive, é a segunda vez que poesia de Leminski é revisitada em obra fonográfica.

Leminski na música

Há dez anos, quando Leminski se tornaria septuagenário, a filha Estrela Leminski rearranjou canções do pai poeta. Em texto para encarte do disco “Leminskanções”, lembra que Paulo Leminski foi requisitado por estrelas como Caetano Veloso. “Meu pai acabou deixando um trabalho múltiplo e espalhado pelo cancioneiro popular. Hoje, poucos fazem ideia da veemência do polaco tocando seu violão em apresentações performáticas e memoráveis.”

“Me propus a fazer o que mais se aproxima do que meu pai faria, caso ele mesmo fosse reunir suas composições musicais, tanto pelo recorte quanto pelas referências”, afirma Estrela no encarte original. Suas referências, no projeto, foram Sex Pistols e John Cage, Gilberto Gil e The Police, em plena sintonia com estética urbana.

Leminski adorava música. “A questão é a seguinte: eu quero ficar semi-profissionalizado em matéria de música por uma questão inclusive de criatividade… eu quero ficar meio com um pé atrás e um pé a frente dentro desse universo da música popular”, disse o poeta, certa vez.

Para Ramil, “Mantra Concreto” fez a “limpeza mais limpa e podreira mais podre” trocarem figurinhas. No meio de tudo, continua, a voz flutuava como um holograma. “Acho que levamos Paulo Leminski a seu destino”, crê, orgulhoso, no texto que apresenta o disco. A capa, bolada pelo designer Felipe Taborda, diz tudo: paródia de um cartaz dos artistas russos Rodchenko e Maiakóvski.

Totalmente Leminski, pois oferece livros, arte, para a classe trabalhadora. “Nada mais alta cultura e pop ao mesmo tempo, exatamente como a poesia de Paulo Leminski, em que a voz das ruas conversa com a voz interior mais elevada, em que um grafite casual ombreia com versos da maior sofisticação”, afirma Vitor Ramil. Assim é “Mantra Concreto”. Moral da história: o destino da humanidade é a música. Façamos tremer o Sistema Solar.

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