Alguns dias hesitei se deveria abrir este rascunho lítero-jornalístico pelo princípio ou pelo desfecho, isto é, se eu colocaria na lauda digressões relativas ao primeiro ou ao último livro publicado por Reinaldo Moraes, que faz hoje 75 anos. A mioleira quase pifou: Reinaldão?!
Sim, meu caro, Reinaldão. O artista que alterna em seus livros a voz narrativa entre primeira e terceira pessoas ao sabor do texto, o escritor dono de humor deletério cuja galhofa corrói dogmas ideológicos, religiosos e comportamentais, o romancista que botou a tagarelice de Kabeto a serviço da zoação à mais alta crítica literária. Um mestre do escracho, esse cara.
Kabeto está bloqueado. Criativamente bloqueado. Não escreve. Não consegue. Ou seja, diante de seu próprio superego, Kabeto esculhamba geral. Sendo assim, restou-lhe os dinossáurios comentários. Esse infeliz vive levando esporro das amigas mais jovens por causa de suas considerações obsoletas em matéria de sexo e relacionamento amoroso.
Uma acadêmica surrou o romance “Maior que o Mundo” numa resenha no jornal “O Globo”. “Nem preciso me perguntar se algo assim escrito por uma mulher sequer seria publicado por uma editora séria, ou resenhado como literatura séria”, escreveu Juliana Cunha. Se cortassem lotes de páginas, ela argumenta, ninguém saberia dizer se tal escárnio literário saíra originalmente em “Pornopopéia” ou “Tanto Faz”, duas obras de Reinaldo.
Mas “Maior que o Mundo” e “Pornopopéia” têm lá suas semelhanças estéticas. Os dois livros são narrados por personagens picarescos. Um é tipo a continuação do outro. Zeca, protagonista de “Pornopopéia”, dirigiu apenas um filme artístico em sua errática carreira de cineasta, enquanto Kabeto, de “Maior que o Mundo”, só deu conta de escrever um romance.
Zeca trampa com vídeos institucionais de frangos. A sua batalha cotidiana consigo mesmo: “Vai, senta o rabo sujo nessa porra de cadeira giratória emperrada e trabalha, trabalha, fiadaputa. Taí o computinha zumbindo na sua frente. Vai, mano, põe na tua cabeça ferrada duma vez por todas: roteiro de vídeo institucional. Não é cinema, não é epopeia, não é arte.”
Contrário a qualquer operação laboral, o herói dessa “Pornopopéia” precisa consumar “uma cine-sabujice empresarial”. Por quê? “Pra ganhar o pão, babaca”, substancia. “E o pó. E a breja. E a brenfa.” Ele segue adiante: “Cê tá careca de fazer essas merdas. Então, faz, e não enche o saco. Porra, tu roda até pornô de quinta pro Silas, aquele escroto do caralho.”
Zeca tem uma voz autoral assaz possante que nos induz à dúvida sobre o real narrador do romance. Quem alertou para isso foi o jornalista Mario Sergio Conti. No texto “O Malandro Voltou Fissurado”, publicado na “piauí”, Conti salienta que a verborragia zequiana é, na verdade, “embrião dum possível roteiro” — nas palavras do herói. Só que não se faz menção alguma no decorrer de “Pornopopéia” ao escritor que dará jeito a esse palavrório junkie.
De quando em quando, o narrador evoca-o: “Você precisa conhecer o Bitch, cara.” Revela-se ainda exigente, orienta-o, tendo absoluto controle literário da situação: “Nada de estilo ‘telegráfico’, ao gosto de futuristas de pince-nez, nem daquelas frases compridíssimas do Proust.” Culto e meticuloso, renuncia à ideia de “parecer profuuuundo” ou “modernista”.
O cineasta marginal também aponta possibilidades estilísticas e, de quebra, sugere maneiras de organizar o texto: “Se quiser, pode também dividir o troço em blocos narrativos. Ou ‘grandes unidades sintagmáticas’, como diria um concretista de pijama. Ou ainda capítulos, como diria qualquer um na rua, com ou sem pijama. Mas nada de titular os capítulos.”
‘Libertino rebaixado’
Todavia, avisa a crítica Eliane Robert Moraes, Zeca se caracteriza como “libertino rebaixado e malandro decaído”. É um tipo ordinário. Ele chega ao fim do romance sem grana, sentindo “umas cólicas na mioleira, um frisson nas interbreubas”, ao mesmo tempo em que sonha com viagem ao Piauí, onde conseguiria “roubar câmera de vídeo digital em alguma loja”.
Se a comicidade foge às “esferas sancionadas da norma burguesa”, como disse o crítico Antonio Candido em sua “Dialética da Malandragem”, Zeca reina na avacalhação ao capitalismo. Enquanto transa com uma prostituta, o narrador reflete que o dinheiro, “um pedacinho de papel pintado”, pode ser trocado “tanto por um prato de espaguete com vinho numa cantina do Bixiga quanto por uma peteca de cocaína” e até mesmo por sexo.
Como vimos, há diferenças: Zeca é safado, canalha, hedonista; Kabeto, por sua vez, levanta grana para a sua cerveja e marijuana trampando em revistas customizadas. Zeca, no íntimo, se limita à próxima foda, ao próximo traficante, ao próximo bar disponível; Kabeto busca a frase capaz de levá-lo novamente à criação literária, nem que a roube — se preciso for.
No que pesem características psíquicas deles, Zeca é desprovido de superego. Kabeto, esse cinquentão ultrapassado, chutou pra lá a junkeria selvagem, totalmente irresoluta e pesada, e agora se dedica ao seu chope ipa sociável. Às vezes, aqui e ali, até fuma um béque. Não abandonou o steinhaeger, de jeito nenhum. E tenta acompanhar as conquistas feministas.
“Ambos arrastam pela vida afora um machismo atávico que os torna patologicamente inatuais, obsoletos, risíveis à beira do ridículo”, afirma Reinaldo Moraes, o “pai” de ambos, ao jornal literário “Rascunho”. “São primos-irmãos, esses dois grandes filhos da puta.”
Primeiro livro
Tanto faz, Reinaldão! Aliás, por falar nisso, “Tanto Faz” é o nome do romance publicado por esse escritor septuagenário em 1983 na coleção “Cantadas Literárias”, que editou nesse período Marcelo Rubens Paiva, Paulo Leminski, Ana Cristina César e Caio Fernando Abreu. Certo ar de descompromisso emana do título. Luta contra a ditadura fracassada. Sexo, drogas e música pop compõem a atmosfera que circunda o bon vivant Ricardo de Mello.
O herói se mete no campo literário destampando uma garrafa de cerveja. Ejeta, então, um “arroto formidável de barítono”. O narrador está distante, manipula o verbo na terceira pessoa, põe fogo numa bagana “em boas condições de uso”. “Escreve num esguicho: água tarde mulher”, lembra. O béque lhe queima os dedos. “Último tapa, longo, tosse violenta.”
Encara um exemplar do “Libération” jogado no chão e, desse modo, constata a “hierarquia sensível da realidade”: “Primeiro meu quarto, depois a cidade lá fora. Aí vêm o país e o mundo.” O país e o mundo, na visão ricardiana, se materializam nas notícias impressas no jornal intacto estirado ao lado do narrador. Mas um gole na cerveja leva-lhe à reavaliação.
Ricardo, isto posto, corrige-se: “Primeiro meu corpo. Depois o quarto, a cidade, o país e o mundo.” O segundo capítulo, no melhor estilo de aforismo oswaldiano, indica o estado espiritual de Ricardo: “A cidade me excita todos os dias, como uma nova namorada.” “Tanto Faz” se estrutura em capítulos soltos. Neles, muitas vezes, há certa paródia intertextual.
Oswald de Andrade, autor de “Memórias Sentimentais de João Miramar” e “Serafim Ponte Grande”, e Charles Bukowski, com suas “Notas de um Velho Safado”, são mestres de Reinaldo. Machado de Assis também, claro. Assim como Henry Miller e Thomas Mann.
“Bukowski contava de suas trepadas, seus porres, suas brigas, o jeito que ele chutava o mundo. Nenhum dos valores burgueses entrava na cabeça dele. Pensei: ‘Vou misturar Oswald com Bukowski e foda-se’. Quando voltei, ninguém queria editar”, me disse.
O crítico José Virgínio Marques Filho, em sua dissertação de mestrado, aponta que “Tanto Faz” traz aforismo, arroubos poéticos, versos de samba inconcluso, rodas de amigos no bar, angústias existenciais, paranoias cotidianas, reminiscências infantis e adolescentes, elucubrações filosóficas, literárias e políticas, sexo nas mais diversificadas modalidades.
Para José Filho, a narrativa apresenta um quê aleatório, com fragmentos cotidianos “numa espécie de diário autorreflexivo decupado à maneira de um roteiro de cinema”. Alguns capítulos remontam às cenas anteriores, de modo a estabelecer conexão linear. A linguagem se revela despojada, carregada em gírias, do tipo que poderia ser falada mesmo hoje pela classe média universitária perto dos 30 anos. Daí vem a jovialidade de “Tanto Faz”.
Um e outro
“Há o gosto pela piada, que às vezes é reflexiva e espirituosa, mas também pode ser gratuita e banal como forma de tergiversar um assunto sério, tudo forrado pela desinibição e desenvoltura no registro linguístico”, analisa José Filho, em “Orgia de Exceção: Um Esboço do Projeto Literário de Reinaldo Moraes", dissertação defendida na USP em 2015.
Já em “Abacaxi”, lançado após “Tanto Faz”, em julho de 1985, é outra história. Ricardo está mais canalha, a ponto de estuprar Martha Maria após noite de drogas e bebidas. A cena, para usar as palavras de José Filho, é perturbadora. “A armadilha para o leitor está armada, fazer vista grossa ao fim do livro para as atitudes do narrador é compactuar com nossa canalhada matinal de estupros cotidianos e estupores coletivos”, teoriza o crítico literário.
Logo no início de “Abacaxi”, de fato, identificamos mudanças na personalidade do narrador: “Meti a mão na bolsa, chutei os estudos e, em vez de tese, teci um texto tóxico-tarado sobre o nada quase absoluto.” Ricardo largou um trampo burocrático na capital paulista para rumar à cidade em que Henry Miller escreveu seu “Trópico de Câncer”, com um ano de bolsa num curso de “planificação econômica para basbaques do terceiro mundo”.
Reinaldo lembrou de ter escrito “Tanto Faz” em Paris. “É comum o primeiro livro de um cara ser meio autobiográfico, porque ele vai escrever sobre aquilo que está mais próximo dele”, me falou. Na obra, Ricardo de Mello chuta a bolsa “para o caralho”. “Não foi o que fiz. Fui lá cumprir ritos acadêmicos. Tinha uma cobrança. E, na hora de escrever, achei interessante criar uma espécie de ‘Macunaíma.’” Reinaldão, o herói de nossa gente.