É preciso intimidade com as palavras para escrever de um jeito conciso. Aspas, por favor, pois a constatação não é da lavra deste escriba. Quem chegou a essa conclusão foi a escritora Fabiane Guimarães, 31, uma das revelações da literatura brasileira. Ei-la na versão original: “Muita gente acha que a concisão enfraquece o texto, mas eu penso exatamente o oposto. É quando a gente limpa as arestas que a verdadeira força se apresenta.”
Nascida em Planaltina, Fabiane cresceu em Formosa, que define como “tão charmosa quanto seu nome”. Veio ao mundo sem chorar, mas com o cordão umbilical enrolado ao pescoço, como as rainhas do passado, diria Gabriel García Márquez. A escritora conta que, em julho de 1991, quando nasceu, nada saiu como planejado: seus pais não tinham grana e um médico amigo da família aceitou fazer parto cesárea e laqueadura por um preço amigo.
A seguir, a autora fala sobre literatura, importância do jornalismo em seu estilo, como funciona rotina de escrita e diz que, antes da carreira engrenar, brincava que era uma jornalista assumida e uma escritora enrustida. “Desisti do jornalismo para assumir minha verdadeira personalidade”, revela a autora, em entrevista ao DM. Veja a íntegra:
Diário da Manhã - “Como se Fosse um Monstro” denuncia - vamos colocar assim - um problema social gravíssimo: rede clandestina de produção de bebês. Como o jornalismo influenciou a construção da narrativa, seja na escolha do tema abordado e na linguagem concisa?
Fabiane Guimarães - A ideia inicial do livro – contar a história de uma barriga de aluguel – partiu justamente de uma matéria jornalística. Li uma reportagem sobre barrigas de aluguel no Brasil e me interessei pelo tema, pesquisando exaustivamente a respeito até desenhar minha personagem. O jornalismo, enquanto uma ferramenta de narração do real, sempre influenciou a minha ficção. A minha experiência como jornalista de redação também me ensinou muito sobre ouvir as pessoas e reproduzir suas histórias.
DM - O enredo dos seus primeiros livros, “Apague a Luz de For Chorar” e “Como se Fosse um Monstro”, são ambientados num Brasil deslocado de Rio ou São Paulo. Por que escolheu tirar dessas cidades o foco narrativo e transportá-lo a Pirenópolis e Brasília?
Fabiane - Escrevo desde criança e também sempre fui uma grande leitora. Ao procurar romances brasileiros contemporâneos, no entanto, sempre me frustrava com o fato de que grande parte das narrativas se passavam no Rio, em São Paulo ou em Porto Alegre. Sentia falta de alguma narrativa que falasse de onde eu venho, Goiás e Brasília, e por muito tempo escrevi em cidades inventadas pela incapacidade de imaginar que alguém leria algo que se passasse no Centro-Oeste. Até que percebi que a minha escrita só seria honesta se retratasse o meu lugar no mundo. Portanto, minhas histórias se passam aqui porque eu sou cria do Cerrado.
DM - Como foi o desafio de pensar ficcionalmente a cidade de Goiânia, já que você é, ao lado de outros 24 autores, uma das publicadas na antologia “Cidade Infundada”?
Fabiane - Eu adorei o desafio. Apesar de nunca ter vivido em Goiânia, já visitei a cidade várias vezes e tenho bons amigos da cidade. Quando fui convidada para a antologia, já estava pensando em escrever um conto de ficção científica, então uni o útil ao agradável.
DM - Há um risco em adotar linguagem simples, mas isso não chega a ser novidade na literatura: Rubem Fonseca e Ignácio de Loyola Brandão, só pra citar dois nomes, construíram relevante obra seguindo essa premissa. Onde se encontra, para você, a matéria-prima da concisão?
Fabiane - É preciso ter muita intimidade com as palavras para escrever de um jeito conciso. Muita gente acha que a concisão enfraquece um texto, mas eu penso exatamente o oposto. É quando a gente limpa e apara as arestas que a verdadeira força se apresenta. É claro que há momentos em que a narrativa, qualquer que seja ela, pede um ritmo mais lento ou uma linguagem mais robusta, mas saber escrever com simplicidade e elegância é uma arte que leva muito tempo para ser alcançada.
DM - Quais foram as dificuldades encontradas para desenvolver voz narrativa própria, que estivesse em sintonia com os anseios dos personagens e que criasse o tom das obras?
Fabiane - Acho que o meu segundo livro consolida algo que comecei com o primeiro, que é a alternância de vozes narrativas. No caso do “Apague a Luz se For Chorar”, o livro é narrado por dois personagens, na primeira e na terceira pessoa. Já no caso do “Como se Fosse o Monstro”, as duas personagens principais são narradas em terceira pessoa (com uma pequena surpresa no final). Acredito que os dois livros mostram bem a minha assinatura como escritora. Busco sempre um olhar sensível e envolvente para os meus livros, e precisei treinar muito para chegar lá, então tenho inúmeros livros e contos incompletos.
DM - Como funciona sua rotina criativa? Acha mais fácil a magia de fazer as ideias irem ao papel (digo, tela) ou encontra mais facilidade em lapidar o texto até deixá-lo com sua marca?
Fabiane - Meu trabalho acontece em várias etapas. Escrever é também reescrever o tempo todo. Sempre que termino um capítulo ou um conto, gosto de deixá-lo “marinando”, esperando ali uns dois, três dias, até retornar e conferir o texto de novo, e é quando começo a remendar, cortar e acrescentar o que for preciso. Não conheço um só alecrim dourado que faça partos graciosos de primeira. A escrita envolve muito trabalho braçal de polimento.
DM - Além de “Apague a Luz…” e “Como se Fosse…”, você também tem contos publicados em revistas e é autora da novela “Pequenas Esposas”, que saiu pela “AzMina”. Como foi sua trajetória, os percalços enfrentados e as dificuldades a serem dribladas por você até a publicação de suas histórias em livro e, de cara, por um grande selo editorial?
Fabiane - Quando publiquei meu livro de estreia pela Alfaguara, as pessoas ficaram muito impressionadas e senti que muitas pensaram que aquele era o começo da minha trajetória como escritora. Mas a minha carreira literária, como a de quase todo mundo que eu conheço, começou muito antes do primeiro romance. Publiquei meu primeiro conto aos 18 anos e sinto que ter começado cedo é um dos motivos pelo qual agora, aos 31, tenho a oportunidade de engatar o segundo livro. Tive muitos anos para treinar, escrever e amadurecer a minha voz literária. “Apague a Luz se For Chorar”, o meu primeiro livro publicado, não foi sequer o primeiro livro que escrevi. Escrevi muitos livros horrorosos que, se Deus quiser, nunca virão a público. Atravessei fases em que não me reconhecia, não sabia o que queria escrever, e acho que tentar e errar foi fundamental para entender qual era o meu projeto literário. Esse longo processo envolveu, é claro, muita rejeição e muitas lágrimas. Fui rejeitada por quase todas as editoras do país. Hoje vejo que não era minha hora, eu não estava pronta. Precisei escrever até estar pronta.
DM - O que leva a literatura a ser uma importante ferramenta para mostrar as mazelas sociais?
Fabiane - A literatura é um território curioso que surge da realidade, mas não é exatamente a realidade. Isso permite que situações sejam reproduzidas e revistas, o que às vezes não é agradável. É como um espelho que permite que a gente enxergue também o olhar dos outros. Fazer literatura requer um exercício enorme de empatia, de sensibilidade para entender o mundo, e por isso mesmo ela reflete múltiplos pontos de vista, inclusive os monstruosos. Acredito muito no poder da ficção de reproduzir a vida, mas sem o propósito de educar ou rever as transgressões. A literatura não está aqui para educar ninguém. Ela é a arte que retrata a experiência humana, com todas as suas dores e os seus abismos. Ainda que doa, é preciso enfrentar até os nossos fantasmas.
DM - Qual ofício é mais digno: jornalismo ou literatura?
Fabiane - As duas profissões são igualmente dignas, mas, como nunca me senti verdadeiramente parte da primeira, fico feliz por poder me dedicar com liberdade à segunda. Eu costumava brincar que era uma jornalista assumida e uma escritora enrustida. Desisti do jornalismo para assumir minha verdadeira personalidade.